A partir do romance de Romeu Correia
Dramaturgia e encenação de Rodrigo Francisco
Afinal o Charló era eu!
Por Rodrigo Francisco
Zé Pardal, um “filho das ervas”, já é demasiado crescido para “andar na pedincha” com o Deolindo, e acaba por procurar no “gigante Biganga” aquilo que nunca teve: um pai. Só que o Biganga, vendedor ambulante de ex-votos e outras insignificantes preciosidades, não foi talhado para figura paternal: até das trovoadas tem medo. Zé Pardal acaba por encontrar refúgio na olaria do viúvo Paulino, que vive em constante conflito com a sua filha, Miquelina, por via de uma certa Carriça que o velho faz entrar sub-repticiamente na cama da sua santa e falecida esposa.
Só que um dia chegam à olaria do Paulino os homens dos bonecos de luz: nada mais do que um par de projeccionistas ambulantes, com um passado obscuro, que andam de terra em terra a projectar pedaços de fita, colados um tanto ao acaso, de filmes do Charlot. Pequeno pormenor: como os saltimbancos não têm uma única fita completa, a projecção nunca chega ao fim. A um sinal do patrão Nicolau, o projeccionista Lopes faz com que a máquina se detenha, com a desculpa de uma avaria. Agenda-se uma nova sessão para o dia seguinte – e há lugar, como não podia deixar de ser, a nova cobrança de bilhetes.
Quando Zé Pardal assiste a uma destas projecções pela primeira vez, não acredita que aquilo que tem diante dos olhos não seja verdade – e instantaneamente encontra a figura que lhe irá colmatar a ausência paterna. Nada mais do que o próprio Charlot, que, com as suas piruetas e expedientes, se recusa a ser subjugado pela miséria que o cerca, e se alcandora a Príncipe dos Vagabundos. Num mundo muito claramente dividido entre ricos e pobres, Charlot é a figura capaz da ternura e do humor. E, para o pequeno Zé Pardal, representa também a conquista de um espaço de evasão: se o mundo dos filmes não é realidade, não há dúvida de que nos permite aceder a outras realidades, bem tangíveis, do nosso íntimo. Eis como Romeu Correia coloca na boca deste “filho das ervas” uma das discussões mais prementes da Teoria da Literatura. Como se o escritor almadense, cujo centenário do nascimento se celebra este ano, nos quisesse dizer que existe uma outra dimensão da nossa existência, na qual nos podemos refugiar quando não nos vai a vida de feição, à qual se acede com a chave da poesia.
Romeu Correia caminhou a par com o movimento neo-realista português. Só que, na sua obra, a descrição que faz do povo não é fruto de uma observação feita de cima. Pressente-se, na criação das suas personagens, e na forma como elas falam e se relacionam com o Mundo, uma íntima convivialidade do escritor com o povo – almadense, neste caso. Expressões como “’Tás cá c’uma febre” ou “Qu’é lá isso, tio Paulino?” não são criadas na tranquilidade de uma biblioteca ou de um escritório: são pescadas na rua, eventualmente à mesa de algum café, onde consta que Romeu Correia se refugiava para escrever. Em momento algum o escritor julga os seus pícaros encantados: antes os compreende, dando--lhes uma dimensão que os eleve da sua fatal condição de vagabundos. E é nesta viagem, patrocinada pela poesia, que Zé Pardal embarca.
Onde é que estão, hoje, os Zés Pardais que Romeu Correia conheceu e fez passar à posteridade? Cem anos passados sobre o nascimento do escritor, que importância pode ainda ter (ou não) o neo-realismo como corrente estética?
Parece-me pueril o argumento de que o neo-realismo se apagou, porque as vidas daqueles de que falava melhoraram – e que já não há Zés Pardais, nem Lopes, nem Miquelinas. Há--os, e bastantes. Ensaiámos parte deste espectáculo na Casa da Juventude de Santo Amaro, no Miratejo. E foram aquelas figuras que nos inspiraram, a mim e aos actores, na criação deste universo daqueles que não foram bafejados pela sorte à nascença. No Miratejo – quer nos miúdos que jogavam à bola no ringue; quer no segurança que no final dos ensaios vinha discutir connosco o estado do Mundo; quer na senhora do café onde lanchávamos, que falava alemão de emigrante suíço e tinha sangue na guelra – encontrámos as figuras que Romeu Correia há cinquenta anos nos trouxe para o seu teatro e a sua prosa. Vestem-se de maneira diferente, têm outras cores e raças, mas no essencial ainda estão muito próximas do nosso Zé Pardal, que pelos vistos queria era parecer-se com o Cristiano Ronaldo – até encontrar outro boneco de luz que lhe conviesse mais para a vida que escolheu.
E porque os espectáculos também se fazem de acasos e de encontros, trouxemos para o palco uma foto do escritor, da autoria do fotógrafo português, radicado no Brasil, Fernando Lemos. Na exposição que ainda está no CCB fomos encontrar, a par de figuras da cultura portuguesa de meados do século XX, como Mário Cesariny, Vespeira, Sophia de Mello Breyner ou Alexandre O’Neill, nada mais do que o almadense Romeu Correia. Ei-lo ali, numa exposição de um centro cultural que está na Praça do Império. Como não trazer essa foto (que se chama “Todos os braços úteis”) para a casa que tem o seu nome? E colocá-la em cena, que é onde os bonecos de luz vivem?