Festa do Avante! 2019 - 6, 7 e 8 de Setembro - Atalaia | Amora | Seixal

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«Os bebés distinguem um bom de um mau compositor»

Entrevista a Paulo Lameiro

«Os bebés distinguem um bom de um mau compositor»

Levar um bebé a um concerto de música clássica não exige cuidados especiais: “barriga cheia, fralda mudada, sestas controladas, e respeitar sempre a vontade dos bebés” são as recomendações, simples, dadas por Paulo Lameiro aos acompanhantes das crianças que quiserem assistir aos Concertos para Bebés que, na manhã de sábado da próxima Festa do “Avante!”, decorrerão no Auditório 1.º de Maio. O maestro que dirige o projeto explica, nesta entrevista, a complexidade da montagem do espectáculo, a necessidade de levar mais músicos do que o normal, quais os instrumentos que têm maior ou menor impacto nos bebés e o problema do nervosismo dos pais. Num projeto com evidentes méritos pedagógicos, Lameiro destaca a exigência de um público especial: “Os bebés aprendem demasiado rápido para que consigamos mantê-los interessados num objecto sonoro com mais de meio minuto”, constata. E a experiência acumulada desde 1998, quando se iniciou o projecto Concertos para Bebés, leva-o a concluir: “os bebés distinguem um bom de um mau compositor, uma boa de uma má obra, e um bom de um mau intérprete”.

O Concertos para Bebés na Festa do “Avante!” vai atuar no Auditório 1.º de Maio. É um espaço muito maior do que o da maior parte das salas onde costuma atuar, provavelmente há mais gente do que noutras apresentações, há ar livre, há mais confusão. Qual é o trabalho de adaptação de repertório, de formação e interação com o público que fazem para esta ocasião? Como se preparam para este dia? Quais são as diferenças que os espetadores encontrarão na Festa do “Avante!” em relação a espetáculos vossos em salas mais pequenas?

A primeira grande diferença, para quem conhece os Concertos para Bebés num auditório e agora vai à Festa do “Avante!”, é a diferença de níveis sonoros. Num auditório todo o concerto tem um ambiente muito camerístico, de grande cumplicidade e controlo sonoro e físico entre músicos e bebés, e todo o som que nos envolve é exclusivamente do concerto. Na Festa do “Avante!” o concerto é somente uma pequena parte da experiência sonoro-musical, e na hora do concerto, pais, bebés e intérpretes acumularam um conjunto de experiências musicais e sonoras que se cruzam com o programa do concerto. Só para dar um exemplo: o nosso corpo, quando é exposto a níveis sonoros mais elevados que o habitual, contrai a musculatura do ouvido médio para se proteger e demora algum tempo a voltar a ouvir normalmente. O processo ainda é mais complexo nos bebés. Logo, no contexto de um festival de música amplificada, andamentos ou passagens 100% acústicas em pp (pianíssimo) pura e simplesmente não se ouvem. Uma outra diferença essencial é a quase ausência do trabalho de luz, pois o espaço cénico é naturalmente o da Festa. Por isso temos de escolher um repertório (ainda) mais concentrado de conteúdos, levamos mais duas intérpretes que o habitual, e o que se ganha com a experiência é seguramente superior ao que não conseguimos realizar.

As presenças dos Concertos para Bebés na Festa do “Avante!” acompanham um movimento já antigo da programação do evento que, com o grande concerto de música clássica das sextas-feiras no Palco 25 de Abril, tornaram banal na Quinta da Atalaia a presença de milhares de pessoas que se dirigem ali não para ouvir sons do rock, da pop ou da música tradicional mas sim para escutarem o que se convencionou chamar de música erudita. Na participação na Festa do “Avante!” vocês sentem diferenças, evoluções, no tipo de público, na forma de comportamento, na maneira de interagir das pessoas? Como é que comparam o público do primeiro concerto que deram na Festa do “Avante!” com aquele que previsivelmente encontrarão agora? É um ambiente que vos agrada ou têm dificuldades em lidar com ele?

Na verdade 2019 será a nossa segunda participação, pois os Concertos para Bebés só tiveram a sua estreia na Festa do ano passado. Apesar de todas as diferenças nas condições técnicas a que estamos habituados numa sala de concerto, o ambiente da Festa do “Avante!” não só não nos perturba como nos agrada e estimula bastante. O que podemos verificar na nossa primeira experiência foi a surpresa de ter um elevadíssimo número de famílias e de bebés a perceber naturalmente que era de um “concerto de música clássica” que se tratava. Não houve palmas fora de sítio, não houve palavras a tentar explicar às crianças o que estava a acontecer, todos participaram quando foram convidados a cantar, e ninguém sentiu que estava fora do lugar. Apesar de não fazermos pop ou rock nos nossos concertos, a verdade é que o programa, para além do clássico, sempre toca no jazz, no tradicional português e na world music.

E os músicos? Quais são as diferenças entre a formação do primeiro concerto que deram na Quinta da Atalaia com o grupo que se exibirá na manhã de dia 7 de setembro? São os mesmos? Há novos recrutamentos? Também há pais e filhos entre os músicos?

Como o ano passado tivemos mais público do que esperávamos, a equipa deste ano tem mais duas intérpretes para melhor ajudar a ter um concerto tranquilo. E sim, é verdade que entre os intérpretes dos concertos de dia 7 também haverá pais e filhos, que apesar de serem intérpretes com 24 anos, se iniciaram no nosso projecto como bebés. A formação terá um trio instrumental com saxofone barítono, acordeão, saxofone soprano, 3 cantores (soprano, alto e barítono) e duas bailarinas.

Para além de repertório de compositores clássicos – que faz a matriz dos vossos espetáculos – habitualmente apresentam também músicas e instrumentos tradicionais ou da pop. Podem explicar-nos porque foi tomada esta opção e se ela foi iniciada logo com os vossos primeiros espetáculos ou, pelo contrário, foi decidida como resposta a uma necessidade sentida após os primeiros contactos com o público?

Nos primeiros anos a linguagem e os intérpretes eram exclusivamente do universo clássico, até porque nascemos de um programa de investigação no âmbito do ensino vocacional de música, nos chamados conservatórios. Mas quando percebemos que muitas famílias não iam somente a um ou dois concertos com os seus bebés, mas iam todos os meses, e sabendo que era o único contexto em que pais e bebés ouviam música acústica (ao vivo, com instrumentos não amplificados) percebemos ser fundamental enriquecer a paleta de linguagens, nomeadamente com o jazz, o tradicional e alguns instrumentos e linguagens da chamada world music. Também fizemos pop e rock, mas estas são linguagens a que mais facilmente se tem acesso. Hoje, mantemos o clássico como matriz (da música antiga até ao contemporâneo, da electrónica ao mais experimental) e depois viajamos ao sabor de solistas convidados com quem gostamos especialmente de trabalhar. Temos um programa novo todos os meses em Portugal, e quatro programas por ano para digressões internacionais.

O que é que fazem quando algum bebé começa a chorar? Têm já algum “truque” preparado para lidar com situações dessas?

Primeiro que tudo importa cuidar que nada se faça para provocar o choro dos bebés, e esse é o primeiro cuidado para minimizar o choro. Mas quando chora um bebé importa antes do mais tranquilizar o adulto que o acompanha, identificar o motivo do choro, o que quase sempre é possível. Fome, medo das luzes, ansiedade do adulto que vem com o bebé ao colo, fraldas por mudar (muitas vezes associadas a emoções inesperadas) cólicas e dor de dentes são os principais motivos para o choro dos bebés num concerto. Importa, pois, identificar e muitas vezes ajudar os pais a perceber o que se está a passar. O truque é mesmo respeitar os bebés, as suas vontades e necessidades.

E os pais e acompanhantes? São habitualmente mais reservados, “bem-comportados” ou, às vezes, querem ser eles a “brincar” com os músicos e deixam os filhos “pendurados”? Também desenvolveram técnicas para focar os pais num comportamento que os ajude a usufruir com os filhos do espetáculo? Os pais, mais ou menos expansivos, também exigem que vocês tenham alguns “truques” na manga para garantir que o espetáculo corra bem?

Dizemos sempre no início de cada performance que nunca um bebé perturbou um concerto, foram sempre os adultos que o acompanham. E é totalmente verdade. Nós pais, quando temos um bebé à nossa responsabilidade, só temos olhos para o nosso papel de educadores e para as reacções do nosso bebé. Mas sabemos que o bebé desfruta e envolve-se mais no concerto se vir e sentir os seus pais envolvidos no concerto. Pela forma como os pais se focam no concerto, assim os bebés desfrutam e experienciam, mais ou menos intensamente, da música que se lhes oferece. O bebé ao descobrir (pelo olhar, postura, tensão muscular, curiosidade, espanto, foco, etc...) que os seus pais só estão a olhar para si, e não concentrados, eles pais, na música que está a acontecer, tira uma conclusão óbvia a qualquer ser humano inteligente: se o que está a acontecer à minha frente não é importante para aqueles que me são mais especiais, então também não o será para mim. Por isso, o nosso grande desafio é oferecer um concerto com um programa e qualidade musicais que interessem aos pais, e num formato que respeite os bebés. Sempre que os pais pensam (e denunciam o seu pensamento em múltiplos gestos) que o concerto é para os bebés, e eles só vieram para observar as reacções dos filhos a uma "actividade infantil”, não conseguimos atingir o nosso objectivo maior. Por vezes temos o contrário que refere, os pais estão tão excitados com o concerto que se esquecem que têm ali os seus filhos e os deixam pendurados. As reacções dependem pois muito se as famílias assistem pela primeira vez a um concerto, ou se vão mensalmente ao longo de vários anos, como verdadeiros melómanos de fraldas.
 

Qual é o instrumento que, habitualmente, desperta mais curiosidade nos bebés?

Os bebés já são pessoas completas, e com gostos muito pessoais, pelo que a resposta a esta pergunta varia de bebé para bebé. E de cultura para cultura (é muito diferente um concerto no Brasil ou na China, em Estocolmo ou em Barcelona) pois os hábitos de audição estão associados a práticas musicais e instrumentos muito distintos. Mas sabemos que os instrumentos de som mais grave, que se movimentam com o músico (saxofone barítono como exemplo), despertam mais interesse que instrumentos fixos (piano, como exemplo).
 

Há algum instrumento que faça, normalmente, os bebés rir? E há algum que os ponha muito sérios? Ou cada espetáculo, cada música, cada instrumento dão resultados distintos e, para vocês, surpreendentes?

Na verdade, quem se ri com determinados sons são os pais e as crianças mais velhas, pois os bebés de meses manifestam um interesse autêntico e puro, sem preconceitos ou associações dramatúrgicas, em relação a todos os instrumentos. Na programação que fazemos ao longo de toda uma temporada temos consciência que corremos riscos ao experimentar linguagens e compositores menos imediatos (para os pais, pois para os bebés é sempre tudo uma oportunidade para aprender e experimentar novas sensações sonoras). Mas sabemos o quão importantes são estas experiências para alargar os horizontes de fruição estética. E como refere, cada programa oferece-nos reacções muito distintas, da parte dos bebés, mas acima de tudo da parte dos pais. Quando a Luísa Sobral terminou um dos concertos desta temporada comentava que os Concertos para Bebés lhe oferecem uma experiência e avaliação únicas, é que os bebés não sabem quem é a Luísa Sobral, ao contrário dos pais. Por isso, é somente pela qualidade da música e da interpretação que se consegue ter o seu interesse no que lhes é oferecido.

E qual é a música que tocam no espetáculo que é, garantidamente, um êxito?

Qualquer obra, compositor e interpretação de níveis muito elevados, quando conseguimos manter essa qualidade máxima sem nos deixarmos perturbar pelas atitudes (sempre extraordinárias e encantadoras) dos bebés, oferece-nos um êxito. Ao contrário do que possa parecer, os bebés distinguem um bom de um mau compositor, uma boa de uma má obra, e um bom de um mau intérprete.

E a mais “arriscada”?

Qualquer obra com mais de 30 segundos é arriscada. Os bebés aprendem demasiado rápido para que consigamos mantê-los interessados numa objecto sonoro com mais de meio minuto.


Como é que nasceram os Concertos para Bebés, como é que se desenvolveram? Querem contar-nos um pouco da vossa história?

Tudo começa em 1992 na Escola de Artes SAMP em Pousos-Leiria com a criação do BERÇO DAS ARTES, um projecto de ensino de música, teatro e dança para crianças dos 0 aos 5 anos, que ainda hoje se mantém e é o nosso campo de investigação primário. Em 1995 vem a Portugal o Professor norte americano Edwin Gordon e trouxe uma nova teoria que muito nos influenciou. Sabíamos agora que a qualidade do que ouvimos em bebés vai ser decisiva para o que somos musicalmente ao longo da vida. Em 1996, estimulados por esta teoria, nasce o MÚSICOS DE FRALDAS, um programa de formação para Educadores de infância, as pessoas que mais tempo passam com bebés. Numa das sessões do MÚSICOS DE FRALDAS percebemos que os bebés não podiam assistir a concertos de música clássica ao vivo, e isso era essencial. Fizemos as primeiras experiências em 1997 e em 1998 realizamos a primeira temporada dos CONCERTOS PARA BEBÉS.

O vosso espetáculo tem óbvio valor pedagógico e já foi várias vezes reconhecido publicamente. Querem dizer-nos que prémios e distinções já ganharam?

Apesar dos vários prémios nacionais e internacionais que temos recebido, de que se destaca o YEAH Innovation de 2013, eu diria que o maior de todos foi o reconhecimento que os CONCERTOS PARA BEBÉS deram internacionalmente ao lugar da ARTE na primeira infância. Existe claramente na programação artística europeia um antes e um depois dos Concertos para Bebés. Pela primeira vez surgiu um projecto artístico que não olha para as crianças (e neste caso, radicalmente crianças, que são os bebés) como um público que necessita ser iniciado ou preparado para as artes. Bebés são um público de hoje, aqui e agora. Nos nossos dias esta ideia já é comum, mas em 1998 ter um projecto artístico, ainda por cima na área da música clássica, que não é recebido nos serviços educativos, ou na programação infantil, mas sim nos palcos e programações principais, de algumas das mais prestigiadas salas de concertos na Europa, isso sim foi o maior legado e prémio do nosso projecto.

Já foram chamados para atuarem para outros tipos de público? Para crianças do ensino especial, por exemplo. Como decorreram essas experiências?

Os Concertos para Bebés já actuaram em maternidades para bebés de 1 e 2 dias, em múltiplas unidades hospitalares, e naturalmente que já tivemos oportunidade de tocar com e para pessoas de qualquer idade com todos os modos especiais de viver, ouvir e sentir. Desde início da nossa história que sempre recebemos, no nosso público, bebés com algumas necessidades especiais. Houve muitas temporadas em que tivemos programas específicos para bebés surdos, onde exploramos as técnicas de audição mais robustas e multi sensoriais. Do projecto BERÇO DAS ARTES SAMP, e do que nele aprendemos dos bebés, nasceram e mantêm-se hoje projectos como ALLEGRO PEDIÁTRICO (pediatria e unidades neonatais) 100 LIMITES AO SOM (doença mental) IL TROVATORE (comunidades ROMA) ÓPERA NA PRISÃO (reclusos) LABORATÓRIO DE MUSICOTERAPIA, e AQUI CONTIGO (pessoas em estado terminal de qualquer idade). Como dizia Platão, porque a Música penetra mais fundo na alma humana.

E no estrangeiro? Têm muitas solicitações?

Apesar de conseguirmos uma actividade assinalável em Portugal, com presença mensal regular em quatro salas (Leiria, Coimbra, Sintra e Loulé) a sustentabilidade do projecto deve-se à programação internacional, que é diversificada e crescente. De início fomos muito solicitados por festivais de Teatro, mas hoje já temos uma programação consolidada em salas e festivas de música clássica. Desde festivais como o LAUS POLIPHONIAE em Antuérpia com programas de música antiga até ao PALAU DE BARCELONA, ou de salas como a EUSKALDUNA e KURSAL no País Basco ou a PHILHARMONIE do Luxemburgo, temos o privilégio de crescer artística e pessoalmente com públicos muito distintos.

Há algum conselho ou algumas recomendações práticas que gostariam de dar aos acompanhantes das crianças, para ajudar a que a experiência do concerto na Quinta da Atalaia seja boa para todos?

Barriga cheia, fralda mudada, sestas controladas, e respeitar sempre a vontade dos bebés. Depois o que importa mesmo é desfrutar desta experiência única que é a Festa do “Avante!”, e a possibilidade de nela experimentar um Concerto para Bebés.

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