A homenagem que Joana Amendoeira vai fazer a Ary dos Santos na próxima Festa do «Avante!» decorre de uma paixão antiga da fadista pelo “poeta de Abril”: “admiro profundamente a forma simples da sua escrita, perceptível à pessoa mais simples do povo, mas cheia de imagens e metáforas lindíssimas”, explica. Homenagear o passado mais marcante da história do fado e, ao mesmo tempo, apresentar novas canções e novas ideias são dois propósitos da carreira musical de Joana Amendoeira. “Tem sido sempre o meu lema: um pé no passado e outro no futuro, é nisso em que me revejo e em que acredito” afirma. A cantora, que conta já nove álbuns gravados e soma vários prémios de interpretação, revela ao “Avante!”, numa escolha difícil entre mais de 600 canções, qual é a letra de Ary dos Santos que prefere.
Quando Ary dos Santos morreu, em 1984, há 35 anos, a Joana Amendoeira não tinha ainda feito dois anos de idade. Propõe-se, nesta Festa do “Avante!”, apresentar um reportório com uma seleção de fados de letras escritas por Ary. Como é que lhe surgiu a ideia?
Desde muito jovem que me tornei uma apaixonada pela poesia, paixão essa que se despertou, por sua vez, pelo meu amor ao fado. Como as minhas principais referências foram, desde o início, Amália e Carlos do Carmo, apaixonar-me pela poesia de Ary foi natural. Admiro profundamente a forma simples da sua escrita, perceptível à pessoa mais simples do povo, mas cheia de imagens e metáforas lindíssimas. Por isso, tive a enorme vontade de tentar criar um espectáculo apenas dedicado à sua poesia no fado. Ideia que me surgiu em 2010 e que só agora, em 2019, concretizei(...).
Carlos do Carmo, em 1977, gravou “Um Homem na Cidade”, um disco com letras de Ary dos Santos que acabou por ser um momento fulcral na história da carreira do grande fadista e marca também uma evolução determinante na história do fado. Isto não impediu a polémica: na altura algumas pessoas, embora elogiando a qualidade do trabalho, apresentaram reservas à legitimidade da colocação do rótulo “fado” a esse álbum...
Eu considero que esse debate não faz sentido algum, nunca fez. E, por isso mesmo, esse grande marco da história da música portuguesa e do fado que é o álbum “Um Homem na Cidade” tem um conjunto de temas que são considerados grandes clássicos do universo do fado. Esse disco faz parte da minha formação como fadista: desde pequenina que os meus pais ouviam esse álbum em casa - bendita influência que me deram.
(...) Não são apenas os fados tradicionais que são fado, como se sabe. Sou um enorme defensora do fado na sua plenitude, com os fados tradicionais, com os fado-canção, com as marchas populares, com o folclore e com as baladas.
O fado transparece na alma de quem o toca e canta e é isso mesmo que chega ao público. E se essa expressão for verdadeira é por si logo reconhecida. É mesmo o elemento da selecção natural.
Quem são os músicos que a vão acompanhar na Atalaia? Já trabalha com eles habitualmente?
Os músicos que me irão acompanhar são os meus grandes companheiros de estrada e da vida: Pedro Amendoeira, na guitarra portuguesa; João Filipe, na viola de fado e Francisco Gaspar, no baixo acústico.
Na discografia da Joana, que conta já com nove álbuns gravados, há uma mistura de fados tradicionais com outros de autores novos. Como é que escolheu o seu reportório discográfico?
O meu percurso discográfico abrange reportórios bem diversos, até porque os meus dois primeiros discos são discos onde ainda cantava muitos temas das minhas referências, mas também nesses registos estavam incluídos alguns temas originais. Na verdade, tenho gravado a maioria de temas originais compostos por novos autores e outros bem consagrados, mas do fado mesmo. Por exemplo, José Fontes Rocha, Mário Raínho, Carlos Manuel Proença, Tiago Torres da Silva, João Monge, Aldina Duarte, Mário Pacheco, Fernando Girão, Paulo Paz, Pedro Amendoeira, Pedro Pinhal, entre outros. Recebi também vários temas de outros compositores da música portuguesa, que se propuseram a compor alguns fados, como o Filipe Raposo, a Amélia Muge, ou o sambista brasileiro Marcos Sacramento. Mas a concepção e selecção de reportório de cada um dos nove discos é difícil de resumir desta forma. O que procuro com as minhas escolhas é propor um reportório novo e pessoal para o universo fadista e não gravar apenas diferentes versões de fados antigos. Homenagear sim, sempre muito respeito pelo legado que nos foi deixado, mas propor novos fados também. Tem sido sempre o meu lema: um pé no passado e outro no futuro, é nisso em que me revejo e em que acredito.
Qual é a letra de Ary dos Santos que, do ponto de vista pessoal, mais a sensibiliza?
Se tiver de escolher apenas um dos seus poemas, então sem dúvida, considero a sua obra prima a “Estrela da Tarde”. Para mim é um dos mais belos poemas de amor de toda a poesia, com uma escrita perfeita, com música dentro de si.