Música

Concerto sinfónico comemorativo do 50.º aniversário do 25 de Abril

Música para a libertação do povo português


Sexta-Feira, 1

22:00, Palco 25 de Abril

Foi assim

Programa

Do fascismo ao 25 de abril

Música popularizada, cantos de resistência e celebração, sons de vanguarda e de libertação

Fernando Lopes-Graça

Divertimento, (Entrada) op. 107 (1957)

Canções Heróicas op. 44 (1946/60)

Canto de Paz - Firmeza - Jornada

Três canções do 25 de Abril (1975)

Canção n.º 1 - Portugal, cravo vermelho

Canção n.º 2 - Viva o amor

Canção n.º 3 - A minha bandeira

Jorge Peixinho

Políptico 1960. JP 007 (1960)

Obra dedicada a Joly Braga Santos

O dia 25 de Abril de 1974

Orquestrações de duas melodias passadas na rádio pelo Movimento das Forças Armadas durante o golpe militar que derrubou o fascismo português

Henry Russel

A Life On The Ocean Waves – “Marcha do MFA” (1838)

José Afonso / António Victorino d’Almeida

Grândola Vila Morena (1971/2009)

Liberdade e Democracia

Composições que ligam compositores de antes e depois do 25 de abril, a cultura clássica com a cultura popular e que fazem a valorização da soberania do povo

Fernando Lopes-Graça

Confusa, Perdida (1945-50)

N.º 10 da Primeira Cantata do Natal op. 61, Sobre Cantos Tradicionais Portugueses de Natividade

Vasco Pearce de Azevedo

Deixai-me Dormir (2012)

Composição para coro e orquestra inspirada na mesma recolha popular da peça Confusa, Perdida de Fernando Lopes-Graça

Fernando Lopes-Graça

Sinfonieta (Homenagem a Haydn), LG 64, op. 220

(1980/85) Dedicada à Orquestra Gulbenkian

Bruno Pernadas

O Governo do Povo (2023)

Versão para coro e orquestra do hino das comemorações oficiais dos 50 anos do 25 de abril, especialmente arranjado pelo autor para a Festa do Avante!

António Victorino d’Almeida

Abertura Clássica sobre um Tema Popular Português, op. 86 (1991)

Peça inspirada na canção tradicional portuguesa conhecida como “A Carvalhesa”

Orquestra Sinfonietta de Lisboa dirigida pelo Maestro Vasco Pearce de Azevedo

Coro Sinfónico Lisboa Cantat dirigido pelo maestro Jorge Carvalho Alves

Solistas: Armando Possante (barítono) e Joana Barata (piano).

Apresentação: Maria João Luís e Cândido Mota

Músicos que vão celebrar a Revolução dos Cravos

Orquestra Sinfonietta de Lisboa

A orquestra Sinfonietta de Lisboa foi fundada em 1995 e tem como Director Artístico e Maestro Titular, Vasco Pearce de Azevedo. Um dos objectivos principais da Sinfonietta de Lisboa é o da divulgação da música de compositores portugueses contemporâneos. É nesse contexto que se inserem muitas estreias absolutas e primeiras audições em Portugal. Desde 2004, a orquestra tem sido convidada a participar no concerto sinfónico de abertura da Festa do Avante! A Sinfonietta de Lisboa gravou música original de Bernardo Sassetti para os filmes O Milagre Segundo Salomé, Um amor de Perdição e Second Life, e para a peça de teatro Dúvida de John Stanley. Participou no Filme do Desassossego de João Botelho, interpretando a música original de Eurico Carrapatoso, A Morte de Luís II da Baviera. Em 2020 gravou música original de Mário Laginha para o filme Ordem Moral.

Vasco Pearce de Azevedo (maestro)

Nascido em Lisboa, Vasco Pearce de Azevedo obteve o Bacharelato em Composição na Escola Superior de Música de Lisboa estudando com Christopher Bochmann e Constança Capdeville. Frequentou cursos de direcção orquestral e direcção coral em Portugal, Espanha, França e Bélgica e concluiu em 1995 o mestrado em direcção de orquestra e coro na Universidade de Cincinnati (EUA). Como maestro e chefe de orquestra conquistou já vários prémios e menções honrosas. É desde 1995 Maestro Titular da Sinfonietta de Lisboa. Actualmente é Professor na Escola Superior de Música de Lisboa.

Coro Sinfónico Lisboa Cantat

O Coro Sinfónico Lisboa Cantat (CSLC), dirigido desde 1986 pelo maestro Jorge Carvalho Alves, já apresentou em palco obras de referência como a Missa Solemnis de Beethoven ou A Criação de Haydn, passando por A Sea Symphony de Vaughan Williams ou A Paixão Segundo São João de Bach. O CSLC trabalha também repertório a capella, tanto nacional como estrangeiro. Neste contexto tem apostado na música e nos compositores portugueses e nos últimos anos procurou gravar harmonizações por compositores portugueses contemporâneos, bem como a integral da obra coral a capella de Fernando Lopes-Graça.

Jorge Carvalho Alves (maestro do coro)

Jorge Carvalho Alves, que também é tenor, trabalhou como Diretor Coral com grupos de todo o Continente e Ilhas, entre os quais o Coro de Câmara Syntagma Musicum (1985/1997), o Coro Sinfónico Lisboa Cantat (desde 1986), o Coro de Câmara Lisboa Cantat (desde 2006), o Orfeão da Covilhã (1988/92), o Grupo Coral de Lagos (1992/1996), o Coro da Universidade Católica de Lisboa (1993/2002), o Coro do Teatro Nacional de São Carlos (2001/2004, Maestro Assistente), o Coral Luísa Todi (2003/07), o Coro Vox Cordis de Ponta Delgada (desde 2006, Maestro Convidado) e, desde 1998, o Coro da Universidade Técnica de Lisboa.

Joana Barata (pianista)

Joana Barata, natural de Lisboa, iniciou o estudo de piano aos cinco anos de idade. A sua formação incluiu a Licenciatura em Piano na Escola Superior de Música e das Artes do Espectáculo, no Porto, pela qual obteve o Prémio Engenheiro António de Almeida. Actualmente colabora com o Ensemble MPMP, com o qual realiza estreias absolutas e gravações, a Associação Musical Lisboa Cantat e a Associação Coral de Odivelas, sendo ainda pianista acompanhadora na Escola Profissional Metropolitana e na Escola Artística de Música do Conservatório Nacional.

Armando Possante (barítono)

Armando Possante é professor de canto na Escola Superior de Música de Lisboa, ensinou no Instituto Gregoriano durante mais de 25 anos e orientou workshops em vários países. É director musical e solista do Grupo Vocal Olisipo e do Coro Gregoriano de Lisboa e foi membro convidado do Nederlands Kamerkoor. Conquistou numerosos prémios de interpretação em concursos nacionais e internacionais, gravou já mais de duas dezenas de discos. Destacou-se na interpretação de dezenas de primeiras audições de peças de vários compositores relevantes e na interpretação de numerosas óperas.

Fazer a ponte entre os tempos da criação musical de resistência ao fascismo português até ao tempo de liberdade democrática na arte musical, proporcionado pela Revolução dos Cravos que libertou o povo português do jugo do fascismo: esta é a proposta do concerto sinfónico da Festa do Avante! de 2023, que celebra os 50 anos do 25 de Abril de 1974, quando o Movimento das Forças Armadas derrubou a ditadura que governou o País durante 48 anos. No período anterior ao 25 de Abril foram escolhidas peças de Fernando Lopes- -Graça e de Jorge Peixinho – dois militantes do PCP.

De Lopes-Graça incluem-se, nessa secção, três exemplos das célebres Canções Heróicas, peças corais que animaram inúmeras iniciativas políticas de combate ao regime. Para fazer a tal “ponte” entre o antes e o depois da Revolução, apresentar-se-ão Três canções do 25 de Abril, onde Lopes-Graça ilustra a esperança e a renovação que a queda do fascismo trouxe ao País.

Ainda nesta secção do concerto foram incluídas duas peças orquestrais: Divertimento, também de Lopes-Graça, e Políptico 1960 de Jorge Peixinho. Com estes exemplos ilustra-se outra vertente do combate ao fascismo: ele não era apenas sobre opções políticas, ele incluía a exigência de uma profunda mudança cultural, de pendor progressista e revolucionário.

Temos, por um lado, o entendimento de uma utilização das raízes culturais do povo português em obras eruditas de formatação clássica que recusasse a mecânica propagandística, paternalista e condescendente do Estado Novo. Foi uma das lutas de Lopes-Graça.

Temos, por outro lado, a ideia de ruptura com dogmas académicos, da imposição totalitária de modelos neoclássicos, limitadores da liberdade criativa e da exploração sonora vanguardista – desafios corajosos ao conservadorismo cultural da época, tendencialmente repressivo. Foi uma das lutas de Jorge Peixinho.

A segunda secção do concerto aponta para a música que foi ouvida na rádio pelos portugueses no dia 25 de Abril de 1974: uma versão de António Victorino d’Almeida da canção de José Afonso Grândola Vila Morena, utilizada como senha para a movimentação das tropas, e aquela que ficou celebrizada como Marcha do MFA, uma composição inglesa que fez de indicativo para a leitura dos comunicados dos Revoltosos no Rádio Clube Português.

A terceira secção do concerto foca-se na herança que as batalhas pela liberdade do passado deixaram para o nosso tempo. Iremos ouvir uma peça coral, anterior ao 25 de Abril, de Lopes-Graça baseada numa tradição popular que, depois do 25 de Abril, motivou um trabalho orquestral de Vasco Pearce de Azevedo, num exemplo de como a luta cultural durante o regime fascista foi agarrada depois, noutro contexto, por compositores das gerações seguintes.

O mesmo se pode dizer da peça O Governo do Povo, de Bruno Pernadas, o hino das comemorações oficiais dos 50 anos do 25 de abril (num arranjo original para a Festa do Avante!), que assumidamente se inspira na ligação às raízes tradicionais portuguesas e a compositores como Lopes-Graça, Luís Freitas Branco ou José Mário Branco, múltiplas heranças da luta político-cultural durante o Estado Novo que atrás se descreveu.

Ouviremos ainda Sinfonieta (homenagem a Haydn) de Lopes-Graça, de 1980, a demonstrar que uma ideia progressista da música não significa uma recusa liminar dos clássicos, e, para concluir, e na mesma linha, mais um exemplo de como uma recolha popular pode ser interpretada sinfonicamente com o arranjo de António Victorino d’Almeida para a Carvalhesa (tradicional de Trás-os-Montes popularmente identificado como hino da CDU e da Festa do Avante!) intitulado Abertura Clássica sobre um Tema Popular Português, de 1991.

Pedro Tadeu

A presença histórica da democratização da música

Filipe Diniz

Registemos um facto: a 9.ª sinfonia de Beethoven foi estreada em 1824. A 1.ª audição em Portugal demorou mais de um século: 1925. A 1.ª audição ao ar livre no nosso país foi em 2001, nos 25 anos da Festa do Avante!. Um significativo trajecto histórico de um atraso cultural a superar.

Luigi Nono, grande compositor italiano e convicto comunista que participou na 1.ª Festa do Avante! em 1976, escreveu: «A música persistirá sempre como uma presença histórica, um testemunho dos homens que enfrentam conscientemente o processo histórico, e que, em cada instante de tal processo, decidem, na plena clareza da sua intuição e da sua consciência lógica, e actuam para extrair novas possibilidades da exigência vital de novas estruturas.»

Pode dizer-se que toda a presença da música na Festa ilustra – ou procura ilustrar – esta concepção. Em todos os palcos e sob todas as suas diferentes formas. Mas em particular nos «concertos da 6ª feira» do Palco 25 de Abril. Por eles têm passado música que vem desde o séc. XVI até aos nossos dias. E cada obra que é tocada e ouvida na Festa ganha aí um acrescido sentido histórico. E isso ajuda a que a música, mais do que ouvida, seja apropriada por um público muito alargado, essencialmente popular.

Nenhuma música – nem nenhuma obra de arte – existe independentemente da «presença histórica» de que fala Luigi Nono. Essa presença é a do tempo e das condições da sua criação, mas também a de todo o tempo que se lhe segue até ao presente. A fruição da obra de arte poderá sobretudo centrar-se nos seus aspectos formais, técnicos e estéticos. Mas a sua historicidade acrescenta consistência e complexidade à essencial dimensão humana que comporta. Acrescenta-lhe, nas palavras de Álvaro Cunhal, «significação social». E esta pode surgir deliberadamente infiltrada, como a Internacional numa obra para piano de Lopes-Graça. Ou podem os ouvidos registá-la de forma diferente, como sucede com A life on the ocean wave, marcha regimental da marinha britânica imperialista tornada hino do MFA e entoada pelo povo. A sinfonia Leninegrado de Schostakovich é uma magnífica obra de arte. Mas a emoção que suscita é inseparável da memória histórica das condições em que foi composta e em que foi realizada a sua 1.ª audição.

Quando na Festa de 2023 se inclui no concerto sinfónico de 6ª feira peças de figuras como Fernando Lopes-Graça e Jorge Peixinho, referem-se duas obras profundamente dotadas de «presença histórica» e que aqui são evocadas. Trata- -se, é certo, de percursos individuais diferentes, de diferentes contextos sociais e geracionais, de diferentes perspectivas de desenvolvimento criativo e de procura de um público e de meios de execução das obras criadas. Em períodos relativamente diferenciados do salazarismo, mas também do próprio desenvolvimento tendencial da cultura musical em geral. O combate pela liberdade tem sentido em ambos.

Lopes-Graça viveu todos os anos do fascismo, Jorge Peixinho viveu 34. Mas a palavra liberdade não diz respeito apenas a esse tempo de opressão. Os constrangimentos à liberdade de criação e de divulgação da própria obra, ou de defender, divulgar e debater abertamente as próprias ideias e concepções não cessaram aí. À beira dos 50 anos do 25 de Abril, estão longe de ser superados os entraves existentes à criação artística e ao desenvolvimento cultural no nosso país. Tanto Lopes-Graça como Jorge Peixinho foram formalmente inovadores. Ambos tiveram de se defrontar com um gosto musical acomodado e conservador. Ambos, no quadro concreto da sociedade portuguesa, encararam a criação como uma forma de resistência.

O lugar certo para os evocar é a Festa do Avante!, cuja opção cultural de fundo prossegue o ensinamento de Lopes-Graça: criar um alargado público às peças musicais mais complexas e exigentes situa-se no lugar oposto do reaccionário «popularizar». Democratização cultural é fazer chegar ao povo todo um maravilhoso património de criação artística, parte integrante do longo – e árduo - processo da emancipação humana.

Fernando Lopes-Graça - um artista militante

Ao celebrar o cinquentenário do 25 de Abril, sublinhamos a presença, antes e depois daquela que foi a madrugada mais bela da história portuguesa, os músicos que lhe deram corpo e alma e, dentre eles, os criadores. No âmbito da composição musical Lopes- -Graça foi, durante largo tempo, o único a assumir abertamente a sua posição ideológica – a sua condição de comunista – com as consequências que daí advieram (da prisão à perseguição sistemática, movida pela ditadura fascista).

A vida de Lopes-Graça acompanha os eventos históricos mais relevantes do séc. XX, da instauração da República Portuguesa, passando pelas duas Guerras Mundiais, ao surgir e ao colapso da URSS, acompanhando a vida política portuguesa até ao golpe militar que abriu caminho à instauração do regime fascista em Portugal e a Revolução de 25 de Abril de 1974 e, militantemente, participando no processo de transformação progressiva da sociedade portuguesa trazido pela Revolução de Abril, empenhando-se na defesa das conquistas alcançadas.

Nos alicerces da formação ideológica de Lopes-Graça, encontraremos por um lado o republicanismo tomarense, já referido e, por outro, o doutrinarismo seareiro: Dirá, em Um Artista Intervém: «Aprendi as obrigações de uma cidadania consciente com aqueles dos meus camaradas que já se haviam assumido uma posição de esclarecimento e vigilância da res publica. Um deles era Manuel Mendes, pela mão amiga e diligente do qual comecei a frequentar a Seara Nova. (…) Para mim, como para tantíssimos dos jovens da minha geração, o doutrinarismo seareiro foi, é sabido, decisivo na nossa educação cívica e política. Não vivi o período da sua mais operante acção. (…) Mas as páginas da revista de tal período (1921-1926) ensinavam-se o que fora essa notável batalha ideológica».

Englobando a personalidade de Lopes- -Graça na dos intelectuais portugueses que se dedicavam à luta, sintetiza Álvaro Cunhal, através de uma citação de Engels, inserida num texto de 1954 (Problemas do Realismo): «O que os distingue especialmente é que a sua vida e a sua acção se desenvolvem quase sempre no próprio coração do movimento, na luta prática da sua época, que tomam partido e se lançam ao combate, pela palavra ou por escrito ou pela espada e por vezes combinando uma coisa com outra. Daí a plenitude e a energia que fazem deles homens no verdadeiro sentido da palavra». Produto e expressão do seu tempo tanto a nível cultural como cívico, a sua vida foi marcada pelos acontecimentos sociais mais relevantes da história portuguesa e europeia do século XX. Cidadão por inteiro, Fernando Lopes-Graça dizia: «Por mim, a minha norma de fidelidade foi sempre: ou tudo ou nada. O homem ou é ou se dá por inteiro, ou, posta uma vez à prova e quebrada a sua fé, a sua inteireza, nenhum pacto já é possível com o passado, ainda que o coração sangre e um pedaço de vida nos fique nas asperezas e emboscadas do caminho».

Sublinhando a personalidade artística de F. Lopes-Graça, dirá depois Álvaro Cunhal, em 1994, em discurso proferido no funeral do compositor: «Lopes-Graça, o artista, o compositor tinha convicções estéticas muito próprias e defendia e praticava com coerência e coragem a liberdade de criação artística que por natureza é liberdade, é audácia, é insatisfação, é mesmo por vezes inconformismo, irreverência e rebeldia».

Das Canções Heróicas às Canções do 25 de Abril

Em 1946, nas páginas da Seara Nova, Lopes-Graça publica Companheiros, Unidos, Hino do MUD e Mãe Pobre, com poema de Carlos de Oliveira – estava lançada a gesta das Canções Heroicas como ferramenta de mobilização das consciências. Diz Lopes-Graça: «É inegável que a poesia que, com ou sem razão, se baptizou de neo-realista, a que no Novo Cancioneiro teve a sua primeira manifestação histórica, se presta melhor do que qualquer outra ao nosso cometimento; e foi portanto a ela, ou aos poetas que hoje a representam, já senhores da necessária maturidade de técnica e de pensamento, que se foram solicitar os versos que ora se põem em música». Canto de Paz, Firmeza e Jornada foram cantadas antes da Revolução, em circunstâncias diversas (inclusivamente, nas prisões do fascismo). De instrumento de intervenção política, repertório integrado no movimento mais geral dos coros amadores, as «Canções Heroicas» acompanharam a transformação sofrida pelo movimento mais amplo, dos coros que contactaram com Lopes-Graça e incluíram a sua música no repertório comum, promovendo-se uma espécie de metamorfose ao nível da recepção dessas obras que, de repertório coloquial, simbolicamente associado à resistência antifascista e com forte conotação ideológica, passou a assumir – após o 25 de Abril de 1974 – o estatuto de um repertório apresentacional, perante um público que, não carecendo já de a ele recorrer com o valor simbólico adquirido no passado de resistência, se vê em condições de o fruir musicalmente, na sua dimensão estética

As Canções Heróicas foram compostas e editadas até depois do 25 de Abril, ultrapassando as oito dezenas, celebrando também a Revolução dos Cravos, da qual foram elas próprias instrumento de construção. As Três Canções do Vinte e Cinco de Abril, compostas em 1975, enfatizam a Liberdade conquistada, o Amor pela Revolução e, na bandeira do movimento, a foice e a ceifeira, em alusão às transformações operadas nomeadamente no Alentejo, com a Reforma Agrária.

Da música tradicional como ponte para a música erudita ocidental

Alexandre Branco Weffort

Em 1942, Lopes-Graça produz o texto sobre a canção popular portuguesa e seu tratamento erudito, nele expondo as linhas mestras que seguiu ao longo de toda a sua vida criadora. De uma primeira experiência, com Variações sobre um tema popular português para piano, passa ao combate ao que via no «confusionismo e na exploração, nos mal- -entendidos e nos oportunismos a que era pretexto, entre nós, o chamado «nacionalismo musical». As trapaças que se faziam à sombra desta infeliz expressão! (…). Hoje talvez se possa dizer que o pior inimigo de um verdadeiro «nacionalismo musical», o maior obstáculo que se pôs à criação de uma autêntica «música portuguesa» (…) foi, certamente, esse «nacionalismo» de cartaz, essa famosa «música portuguesa», que não conhecia nem técnica própria, nem disciplina interna, que iludia os problemas e sofismava as intenções, que era vazia de conteúdo e nula como forma superior de arte». O segundo contacto com a matéria musical popular só se fez uns dez anos mais tarde, e teve como resultado a composição das 24 Canções Populares Portuguesas, iniciadas em Paris. Lopes-Graça chamou às suas canções «versões de concerto», dizendo: «o que implica um tratamento em extensão e profundidade, digamos assim, de todas as sugestões que a canção portuguesa pode oferecer, sob o ponto de vista da expressão, do ritmo, da harmonia e mais características psicológicas e morfológicas, e que se traduzem, principalmente, na parte instrumental, visto que conservei sempre a melodia toda a sua pureza e identidade originárias».

Dizia então Lopes-Graça: «uma canção popular ou é um documento folclórico (com o seu interesse artístico sui generis, que, por vezes, bem grande é) – e, nesse caso, não há que tocar-lhe, não há que sujeitá-la a qualquer tratamento estilístico –; ou, logo que se lhe toque, logo que a harmonizemos, logo que a tratemos, só podemos ter em vista o tirarmos dela o máximo partido artístico, explorando-lhe todos os recursos e valorizando-os em função das virtualidades estéticas nela implícitas».

Defendendo o critério da qualidade artística da música popular, Lopes-Graça acrescenta: «De contrário, pode dar-se este caso, que, de facto, tantas vezes se verifica: o documento folclórico tem em si mesmo muito mais interesse e o seu valor artístico é muito maior do que o das paráfrases que se lhe fazem, do que os arranjos que pretendem valorizá-la, do que o molho mais ou menos estilizado com que ela, a canção, é servida».

O nosso compositor enunciava assim o problema: «chegar à criação de um idioma musical individualizado, capaz de, superada a necessária fase folclorizante inicial, traduzir e dar expressão superior e universal às ideias e aos sentimentos do primeiro músico que tenha suficiente génio para tirar dele, desse idioma, qualquer coisa que se possa verdadeiramente apresentar como «música portuguesa» – dando, evidentemente, a esta expressão o seu profundo significado étnico-cultural, e não o corrente e banal significado pitoresco-regionalista». E, à resolução do problema enunciado, problema que conserva a sua actualidade, o compositor dedicou coerentemente a sua vida criadora.

Sinfonieta Homenagem a Hayden

Composta por F. Lopes-Graça por encomendada da Fundação Gulbenkian em 1980, foi estreada no ano seguinte e depois revista, datando de 1985 a versão que iremos ouvir. Com quatro andamentos (Adagio-Allegro moderato; Andante; Gaio; allegro com spirito), segue naturalmente, pelo que informa a dedicatória, a estrutura da sinfonia clássica. A dedicatória assinala o âmbito do dispositivo instrumental – da orquestra em tempos de Haydn – e a estrutura dos andamentos guia-se também pelo modelo estabelecido pelo compositor vienense (com o qual Lopes-Graça dialoga através de uma citação expressa, tratada no entanto com os recursos modernos). O terceiro andamento, que no modelo de Haydn seria um minueto, Lopes-Graça designará por Gaio – nome de um pássaro de habitat florestal, com alguma tonalidade azul na plumagem, enquanto, no âmbito da cultura popular, o verde-gaio será uma dança popular mais presente no Ribatejo e Estremadura. E, será também em Gaio que será feita a citação do material musical extraído do minueto da 110.ª sinfonia de Haydn, compositor que, segundo Lopes-Graça, foi «um dos maiores génios criadores da música (…) [tendo] a mais alta expressão da sua arte na música sinfónica».

Divertimento

Do Divertimento (para sopros, percussão e cordas) de F. Lopes-Graça, ouviremos a Entrada, peça que inicia o programa convida a uma fruição distendida da música instrumental. Como dizia Constança Capdeville, no libreto que acompanha a primeira edição em CD da obra, «o Divertimento é-o em toda a verdadeira acepção da palavra. (…) Música festiva, buliçosa, despreocupada, sem, no entanto, perder o que quer que seja no que respeita a qualidade. (…) Resumindo, um alto exemplo de música «popular».

Confusa/Perdida/Deixai-me Dormir

Confusa/Perdida é uma peça coral harmonizada por Fernando Lopes- -Graça que a incluiu na sua Primeira Cantata de Natal, terminada no ano de 1950, baseada num fragmento musical de um auto tradicional do litoral português, publicado em 1919 pelo etnomusicólogo Pedro Fernandes Tomás, na sua obra Cantares do Povo. Em 2012 Vasco Pearce Azevedo compôs um arranjo para coro e orquestra para esta mesma origem, a que deu o nome de Deixa-me Dormir, que será ouvida a seguir à execução da peça de Graça. Ilustra, neste concerto, a ligação que compositores posteriores ao 25 de abril deliberadamente fazem ao trabalho de compositores que, durante o Estado Novo, se notabilizaram e se tornaram referências para o futuro.

Jorge Peixinho e a liberdade do som A propósito da obra Políptico-1960

Tânia Valente

Música e Investigadora no CESEM-NOVA/FCSH

Jorge Peixinho nasce em 1940 no Montijo. Começa a estudar piano aos 7 anos e aos 8 já compõe as primeiras peças. Faz os seus estudos de Piano e de Composição (com Artur Santos e Croner de Vasconcelos) no Conservatório Nacional, seguindo depois para Roma como bolseiro da Fundação Gulbenkian, onde se diploma em composição em 1961. Em 1960 trabalha com Luigi Nono em Veneza e frequenta o seu primeiro curso de férias de «Nova Música» em Darmstadt na Alemanha, onde viria a trabahar com Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen. É autor de uma obra prolífica e multipremiada em Portugal e no estrangeiro. Em 1970 funda com Clotilde Rosa o Grupo de Música Contemporânea de Lisboa, que se mantém até hoje em actividade. Morre a 30 de Junho de 1995.

Peixinho dizia que o objectivo da sua música era «a construção e organização de um novo e pessoal mundo sonoro.» Explorando «intensivamente todas as relações entre a harmonia e o timbre», Peixinho procurava «construir uma espécie de rede muito densa de sons transformados», que por sua vez resultariam numa «atmosfera sonora onírica».

O Políptico-1960 para Orquestra de Câmara foi composto em Veneza em 1960 e dedicado a Joly Braga Santos, que viria a dirigir a estreia da obra em Nápoles em 1961. A palavra «políptico» é um termo utilizado nas artes visuais, especialmente na pintura. Ela vem do grego "polyptychos", que significa «com várias dobradiças»". Um políptico é uma obra de arte composta por múltiplos painéis que são unidos por dobradiças, permitindo que sejam abertos ou fechados. Cada painel conta uma história, que pode representar uma sequência de eventos ou simplesmente formar uma composição visual coesa.

Assim, o Políptico de Peixinho (com a duração de cerca de 4’45 minutos) surge estruturado em 4 painéis ou partes, «apresentando cada uma delas um problema musical diferente», mas resultando numa obra auditivamente coesa com um espírito para-dodecafónico. A 1.ª parte tem como foco a alternância de sons isolados, desde o simples ou mais elaborado, em jogos de timbres, densidades, melodias, harmonias continuamente variáveis. O problema musical aqui proposto é a «obtenção de “atmosferas”» extremamente concentradas e sempre renovadas». Na 2ª parte, quase minimal, o «som isolado» ganha uma importância maior, surgindo sozinho ou sustentado, em alturas variadas e por vezes sobrepostas num máximo de afastamento entre graves e agudos. Neste contexto, os restantes parâmetros musicais (timbre, densidade, registos) assumem auditivamente um lugar primordial. A 3.ª parte utiliza »uma sequência de estruturas muito individualizadas», num discurso baseado na interrupção e na ruptura da continuidade. O resultado é uma atmosfera «quebrada e cheia de contraste de tensão».

A 4.ª parte utiliza (finalmente!) uma melodia. Mas esta é construída por uma sucessão de timbres e a sua sobreposição, resultando, nas palavras do compositor, numa «Klangfarbenmelodie» (melodia de timbres, termo e técnica inventada pelos compositores da 2ªEscola de Viena).

Considerando-se três grandes períodos na obra de Jorge Peixinho, Políptico surge num 1.º período, de 1959 a 1921, que os estudiosos classificam como período de aprendizagem. O início desta fase é marcado sobretudo pelo encontro musical com Itália. Numa entrevista ao Diário de Notícias em 1961, Peixinho disse que a ida para Itália significou «a descoberta da minha própria vocação e personalidade.

Devido às limitações do Conservatório e do nosso nível musical eu fora levado a adoptar um impessoal estilo neoclássico (...) Mas em Roma, ao contacto com o ensino vivo da música dos nossos dias, senti os meus interesses musicais desviarem-se para as obras de Schönberg e especialmente de Webern, que em Lisboa eu mal conhecia.» De facto, durante a ditadura do Estado Novo, muitos artistas e intelectuais enfrentaram restrições e censura nas suas expressões artísticas e no acesso às correntes artísticas de vanguarda. Por isso Peixinho sentia «limitações» no Conservatório, que talvez não fossem apenas musicais. Ao mudar- -se para Itália, Peixinho encontrou uma «sociedade livre» e teve acesso a um cenário musical mais aberto e estimulante, com oportunidades de intercâmbio e colaboração com outros compositores e músicos contemporâneos. Essa liberdade foi-lhe também proporcionada pelo seu principal mestre em Roma, o compositor Goffredo Petrassi. Segundo Peixinho, Petrassi nunca «impõe aos seus alunos o mais pequeno princípio de técnica ou de estética musical. A sua missão é preparálos para uma escolha consciente (...). Para Petrassi o que conta é fomentar a realização da personalidade de cada um». Mergulhando na música do seu tempo mas tentando conduzi-la para outro patamar, podemos dizer que Peixinho foca-se em libertar o som da prisão das formas do passado, mas respeitando-as: «Bach, Beethoven, Schönberg ou Webern são mestres igualmente válidos para um músico contemporâneo, basta acertar na lição que cada um lhe pode dar.» Políptico é uma obra onde Peixinho ainda não mostra os rasgos de arrojo gráfico, que caracterizariam obras posteriores. É no entanto a obra de um artista à procura da sua linguagem, um grito de «liberdade» que não encontrava em Portugal, mas onde, não obstante, Peixinho encetava projectos didáticos já em 1961 para «renovar» a música e o seu ensino. A música de Jorge Peixinho, vanguardista como um quadro abstrato, é de facto pouco ou nada compreensível para um ouvido não treinado. Porém, não é com ouvidos de entendidos que devemos escutar Peixinho. Primeiro, temos que abandonar todas as concepções que possamos ter de forma musical. De seguida devemos fechar os olhos, inspirar e mergulhar no mundo sonoro de Peixinho, como numa água, onde não há forma, mas há luzes que batem na água e criam efeitos de luz e cor, há ventos e marés que, ora criam movimento, ora deixam as águas serenas, e há uma fluidez e liberdade do som, que se busca e se encontra a cada ataque musical.

Bibliografia:

Delgado, Cristina, Assis, Paulo de (organização e selecção), Jorge Peixinho: escritos e entrevistas, Edição Casa de Música/ CESEM, 2010

Machado, José (organização), Jorge Peixinho: in Memoriam, Lisboa: Editorial Caminho, 2002

Teixeira, Cristina Delgado, Música, Estética e Sociedade nos escritos de Jorge Peixinho, Lisboa: Edições Colibri/CESEM, 2006

Jorge Peixinho, Políptico-1960, partitura original do compositor gentilmente cedida por Jorge Sá Machado.

Como a Grândola e o Hino do MFA entraram na Revolução

Como é que surgiu a ideia de passar músicas na rádio para servirem de sinal para o arranque da operação militar que desencadearia a Revolução dos Cravos?

Conta o capitão Diniz de Almeida, no seu livro Origens e Evolução do Movimento dos Capitães, que a anterior «saída fracassada de 16 de março 1974» (a chamada “revolta das Caldas da Rainha) provocou na maior parte dos oficiais do Movimento uma perigosa fobia em relação às saídas em falso” “Vários sugeriram, então, designadamente da província, que fosse dado um sinal rádio que determinasse claramente o início das operações».

Decidem-se dois sinais, um primeiro na estação Emissores Associados de Lisboa, cinco minutos antes das 11 da noite do dia 24 de abril com a canção E Depois do Adeus, de Paulo de Carvalho; um segundo com a Grândola, Vila Morena, de José Afonso. Inicialmente tinha sido escolhida a canção Venham Mais Cinco, mas ao descobrir-se que esse outro tema de José Afonso estava proibido de passar na Rádio Renascença, decidiu-se mudar a senha para a Grândola. Na madrugada do dia 25 de Abril, à meia- -noite e vinte, Paulo Coelho, o locutor de serviço, sem saber de nada, quase estragou tudo porque, à hora exacta, em vez de passar uma gravação prévia com a leitura de vários textos e a passagem da senha e da canção, decide passar anúncios publicitários.

Mas, após alguns momentos de tensão, no final da leitura do primeiro anúncio, Manuel Tomás, um realizador de rádio que estava dentro da conspiração, presente na cabine técnica, dá um pequeno safanão, aparentemente sem intenção, na mão do técnico de som, José Videira, e provoca o arranque da bobine da gravação que continha a senha. Então, pela voz previamente registada de Leite de Vasconcelos, arrancou a Revolução.

O Hino do MFA

Após a ocupação do Rádio Clube Português pelos oficiais do Movimento das Forças Armadas, na madrugada de 24 para 25 de Abril, e da utilização dessa emissora para a difusão dos comunicados do MFA, colocou-se o problema aos revoltosos sobre a música adequada para anunciar os seus comunicados ao país.

O primeiro comunicado do MFA já tinha ido para o ar quando apareceu no Rádio Clube Português um dos técnicos sonorizadores que ali acorreu para dar o seu apoio: José Ribeiro.

Para resolver o problema que encontrou, José Ribeiro decidiu arrombar o armário do arquivo de um programa de discos pedidos pelos ouvintes, o Quando o Telefone Toca, que tinha uma discoteca vasta. É assim encontrado um LP com um trecho do britânico Henry Russel, a marcha Live On The Ocean Wave, que tinha apenas um minuto, para servir de indicativo aos comunicados do MFA.

A marcha é do compositor e cantor inglês Henry Russel, nascido em 1812 e falecido em Londres no ano de 1900 e que conquistou alguma notoriedade por assinar duas marchas que se tornaram populares em Inglaterra: Cheer Boys Cheer e A Live on The Ocean Wave.

Esta última passou a fazer parte do repertório habitual das bandas militares inglesas nos seus concertos de fim de semana, e foi nos anos de 1970 incluída num Long Play gravado pela banda da Her Majesty’s Royal Marines ou seja, dos “marines” de Sua Majestade, a Rainha de Inglaterra.

Foi este disco que José Ribeiro descobriu no armário que arrombou e que os portugueses passaram a designar por Marcha do MFA.

Ficha Técnica

Produção: Alexandre Branco, Madalena Santos, Pedro Tadeu e Vasco Azevedo
Realização e Vídeo: Media Luso, Lda. Som e Écrãs de Vídeo: Pixel Lda
Iluminação: Pedro Leston
Director de Palco: Nuno Cruz
Montagem de cena: Pixel Lda, Roadies DC e Tapada Crew
Catering: Lisbonne, Lda.
Apresentação: Cândido Mota e Maria João Luís
Agradecimentos: Centro Cultural de Belém, Teatro Municipal de São Luís, José Machado e Jorge Machado

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, Av. Baía Natural do Seixal 415, Amora, Seixal, 2845-606
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Concerto sinfónico comemorativo do 50.º aniversário do 25 de Abril