Foi assim
Formada na cidade de Braga em 1984, os Mão Morta tornaram-se rapidamente uma referência para a cena rock portuguesa. Desde então, soma elogios da crítica e de grandes artistas, como Nick Cave ou Jello Biafra (Dead Kennedys). Com mais de 15 discos editados, a banda sempre esteve presente nas listas dos melhores da música nacional, atuando em diversos festivais ou eventos voltados ao cinema e à cultura.Tocando na sequência integral o novo álbum “No Fim Era o Frio”, o grupo recria em palco a distopia, o frio cosmológico e o vazio afectivo de que trata a narrativa, sem outro programa para além do mantra hipnótico tecido pela música. Com a presença de novos integrantes, o grupo revisita ainda alguns temas do seu património musical, instalando o caos urbano e a decadência civilizacional que sempre os inspiraram e inquietaram.
Entrevista ao jornal Avante!
«Não esperança no futuro do capitalismo e temos orgulho nisso»
As alterações na formação da banda foram justificadas pela necessidade de quebrar rotinas, com o esforço para Mão Morta se manter «pertinente». Porque é que acham que Mão Morta é, 38 anos depois do seu nascimento, uma banda pertinente?
Basicamente, porque nos esforçamos para que isso aconteça! Convém esclarecer, no entanto, que a pertinência a que nos referimos é, antes de mais, uma pertinência artística, mas também uma pertinência social – na falta de melhor designação –, para connosco próprios. A área musical onde nos inserimos, genericamente designada por pop/rock, é um braço específico da música popular que – a par de uma imobilidade férrea de aderência a tiques identitários e, porque não dizê-lo, comerciais – apresenta uma já longa tradição de mestiçagens e influências de outros géneros e áreas musicais, desde a rudeza do blues rural que esteve na sua génese até aos achados das vanguardas eruditas da electro-acústica e da electrónica que, cada vez mais, a contaminam.
É esta experimentação que nos apaixona e é este desejo de aprender e experimentar, de brincar, que nos faz estar na música. Quando tal não acontece, quando a brincadeira é substituída pela rotina, algo vai mal e torna-se necessário encontrar soluções. Porque só assim, na aprendizagem permanente, é que a música se torna pertinente, para nós e, porventura, para o meio musical que nos rodeia.
Sim, não temos qualquer esperança no futuro do capitalismo e temos orgulho nisso. O nosso único medo, não desesperança, é que o fim do capitalismo ocorra demasiado tarde para a sobrevivência do planeta e, consequentemente, da espécie humana.
A isso acresce uma incapacidade natural para fechar os olhos ao mundo em que vivemos e reflectir sobre ele, deixando depois, o que não nos podemos impedir, que essa reflexão contagie a actividade musical, inclusive o trabalho de pesquisa e experimentação de novos equilíbrios sonoros.
Se olharmos para os títulos dos discos ou para as letras das músicas, nota-se um padrão no Mão Morta: a recusa de resignação ao convencional mas, também, uma espécie de irritação por esse convencional, esse padrão social, dominar avassaladoramente toda a sociedade. O Mão Morta é uma banda sem esperança no futuro?
Sim, não temos qualquer esperança no futuro do capitalismo e temos orgulho nisso. O nosso único medo, não desesperança, é que o fim do capitalismo ocorra demasiado tarde para a sobrevivência do planeta e, consequentemente, da espécie humana.
É um disparate rotular a música dos Mão Morta com a marca música de intervenção?
Não é propriamente um disparate, porque também o é, mas é demasiado redutor. O nosso trabalho é essencialmente musical, de pesquisa e descoberta musical, e isso não tem nada a ver com o conceito a que o rótulo música de intervenção se refere.
Depois, porque o lado mais interventivo – nesse sentido tradicional atribuído à música de intervenção e que tem a ver com os textos –, apesar de se focar, muitas vezes, sobre a realidade social e mesmo económica, é mais um trabalho de reflexão e de pensamento, sem certezas definitivas nem mensagens, do que um libertar de palavras de ordem e comunicados fechados, como normalmente acontece com a música de intervenção mais típica.
Consideram a vossa participação na Festa do Avante! como momentos relevantes no vosso percurso? Porquê?
Bem, eu estive na primeira Festa do Avante!, na antiga FIL, onde fui ver o Archie Shepp, meu herói da altura. E estive em todas as Festas até à primeira realizada na Atalaia, em 1990, salvo erro, guardando memórias inesquecíveis de quase todas. De modo que tocar na Festa do Avante! era naturalmente um desejo muito perseguido, posso dizer que por mais de 30 anos. Quando finalmente isso se concretizou, em 2017, tal coincidiu com o centésimo aniversário da Revolução de Outubro e desde logo vimos nisso um signo auspicioso – um novo capítulo se abria…
Assim foi, em 2020, quando, em plena pandemia, a Festa do Avante se tornou um dos poucos e raros refúgios para a continuidade da actividade cultural e musical. E agora, quando os ecos da pandemia se começam a desvanecer e a actividade cultural reemerge em força, a Festa do Avante! não podia faltar como espaço natural da liberdade cultural.
Vêm à Festa dois anos depois de terem passado pela Atalaia, em plena pandemia, num dos poucos concertos que, nessa altura, tal como os outros artistas, foi possível fazerem. O regresso à libertação dos constrangimentos, que é notória no público, é também sentida por quem está no palco?
O que se passa no público é absorvido por quem está no palco e se, em 2020, os concertos eram frios e, de certo modo, estranhos e aberrantes, reflexo das restrições sanitárias que era necessário cumprir e que colocavam o público numa espécie de camisa-de-forças emotiva, com o progressivo alargamento e desaparecimento dessas restrições e com o público a manifestar-se de forma ainda mais expressiva do que antes da pandemia, como se objecto de repentina descompressão, claro que essa expressividade explosiva é também sentida por quem está no palco, voltando os concertos a ser locais físicos de grande gregarismo e comunhão colectiva.
É possível que ainda subsistam medos da pandemia, até porque ela continua a existir, mas a acontecer são muito residuais e não detectáveis no meio da multidão…
O alinhamento que vão apresentar inclui temas novos, eventualmente de um próximo disco? Tem canções do último álbum e do EP Tricot, que gravaram com Pedro Sousa? Como está pensado o espectáculo que vão mostrar na Festa do Avante!?
Vamos à Festa do Avante! tocar na íntegra o nosso último álbum, No Fim Era o Frio, saído no último trimestre de 2019 e cuja divulgação foi interrompida pela pandemia. Depois, se houver tempo disponível, tocaremos alguns outros temas do nosso reportório. Quanto ao Tricot, com o Pedro Sousa, estamos a trabalhar para um espectáculo com os temas do EP e outros novos, também compostos obedecendo aos mesmos parâmetros de improviso, mas a estrear só em Janeiro de 2023.