Palco 25 de Abril
Concertos que ficam para a história
8 Setembro
Nesta Festa há sentimentos – alegria, fraternidade, amizade, solidariedade, camaradagem – que não existem em mais festa nenhuma. No sábado, ao início da tarde, no Palco 25 de Abril, foram novamente espoletados ao som da Carvalhesa. É um momento absolutamente mágico, emblemático, divertido, pelo qual se esperam 362 dias, 52 semanas, mais de oito mil horas, que provoca sensações libertadoras, envolvendo pessoas de todas as idades.
Os primeiros a actuar foram os Miss Lava. Este quarteto, um poder da natureza, apresentou, a um público arrebatador, uma progressão de acordes demolidores e imprevisíveis bem evidentes em «Sonic Debris».
Seguiram-se os muito aguardados Peste & Sida, que para a 40.ª edição da Festa do Avante! convidaram alguns dos músicos que ao longo das últimas três décadas fizeram parte da formação. Esta que é uma das bandas mais queridas da Festa, sentimento recíproco, pela sua prestação em palco e alegria de ali estar, trouxeram temas como «Carraspana», «Família em stress», «Furo na cabeça» e «Alerta geral», este dedicado aos 54 milhões de pessoas que votaram em Dilma Rousseff, agora destituída das funções de presidente do Brasil num autêntico golpe de Estado. Entraram então as divertidas freiras do coro «Cotonetes» para, ininterruptamente, continuar com «Sol da Caparica», «Paulinha», «Veneno», «Portem-se bem», «Chuta cavalo» e «Está na tua mão». «Obrigado camaradas. Até Sempre», despediu-se João San Payo.
Os concertos improváveis iniciaram-se com Carlão, que convidou para o palco Sara Tavares e Sam the Kid, juntando, desta forma, o hip-hop, o rap e a world music. «Krioula» foi a primeira a ser tocada em dueto com a cantora. «É bom estar aqui», confessou Carlão, que, com o outro convidado, executou um tema do filme «O crime do padre Amaro». Com Bruno Ribeiro, Gil Pulido e DJ Glue, soltou-se, depois, a revolta com «Colarinho Branco», um manifesto contra a corrupção. Terminou com «Os tais», música friendly das rádios nacionais. Marcos e Anita, em palco, dançaram, apaixonadamente.
Sam Alone & The Gravediggers trouxeram ainda maior qualidade ao espaço. Os temas, com origem no folk tradicional, são verdadeiros hinos de protesto. Reportaram-nos, por vezes, para outros cancioneiros, como Pete Seeger, Bob Dylan e Bruce Springsteen.
Janis Joplin, com «Mercedes Benz», ouviu-se na entrada e «Believers And Renegades» puxou pelo público.
O discurso musical, também ele político, prosseguiu com Criolo, do Brasil, um artista com mensagem sem fronteiras. «Convoque seu buda» e «Subirusdoistiozin» foram apresentados pelo rapper, que se opôs ao «golpe» contra Dilma. «Fora Temer», gritou o público português.
Do México chegaram os Los de Abajo, com ritmos que foram desde o ska ao punk, entrosados com percussões de outras paragens. O público foi chamado a dançar ininterruptamente, do primeiro ao último acorde.
Noite dentro, regressou a música em português, com o rock popular dos Diabo na Cruz, também eles porta-vozes da massa indignada. Começaram com «200 mil horas» e continuaram com «Ganhar o dia», «Tão lindo», numa incrível prestação do baterista, «Baile na eira», «Os loucos estão certos», que puxou pelas gargantas, «Siga a rusga», «Mó de cima», «Saias», «Dona Ligeirinha» e «Vida na estrada» e «Moça esquiva».
Os Ferro Gaita, reis do funaná e uma das melhores bandas cabo-verdianas do momento, apresentaram o seu último trabalho, «Festa Fora». Temas como «Ta Bai Ta Pupa» levaram ao rubro um público vibrante e bem disposto.
Também Ana Moura, deslumbrante como sempre, vestida de branco, é repetente na Festa. O anúncio da actuação trouxe para ali muitos outros milhares de pessoas. Aqui o fado não foi sinónimo de tristeza. «Moura encantada» foi sentido de olhos fechados, num momento de introspecção e de entrega ao mais tradicional estilo de música portuguesa. A partir daí, voltando-se para o público, mostrou como o fado se mistura, numa união perfeita, com outros estilos, como aconteceu com «Fado dançado» e «Dia de folga». Pelo meio soltou a voz com «Sou do fado». Terminou, apoteoticamente, com «Desfado».
O movimento perpétuo gerado pela energia do público continuou com a Orquestra Plateria, da Catalunha. O piano, a bateria e instrumentos de percussão, as guitarras, o saxofone, a flauta, o trombone, um emaranhado de instrumentos, entrosado pelas vozes, masculinas e femininas, fez dançar diversos estilos. Assim acabou uma noite mágica.
Impressionante
No domingo – com muito sol e muito calor – os primeiros a actuar foram os Fumaça Preta. Com eles viajámos pela música psicadélica, num verdadeiro cocktail de sons festivos.
Fast Eddie Nelson foi o «senhor» que se seguiu. No palco, onde há sons de todo o mundo, esteve um músico do Barreiro. No seu reportório incluiu diversos géneros, como blues, folk, bluegrass, rock and roll. «Tear It Down», «Dry Water» e «This Mountain» surpreenderam.
Da Escócia vieram os Treacherous Orchestra, uma big band que combina a música tradicional do seu país com influências mais contemporâneas. A gaita de foles, o banjo e o acordeão dominaram o palco.
Na Festa, em 45 minutos non stop, os Jafumega fizeram as delícias de todos, com «Ribeira», «Toca a banda no coreto», «La dolce vita», «Nó cego» e «Latin América», tema que estrearam na Festa em 1981. Porque as palavras são muito importantes, entoaram: «Eu q′ria ser camponesa/Ir esperar-te à tardinha/Quando é doce a Natureza/No silêncio da devesa. E só voltar à noitinha…», da poetisa Florbela Espanca.
Depois do comício de encerramento, naquele mesmo palco actuaram ainda Sérgio Godinho & Jorge Palma. «Juntos», nome do disco que resultou de um espectáculo gravado em 2015, começou a ser pensado em 2014, quando os dois nomes incontornáveis na história da música portuguesa se encontraram no Avante!. O espectáculo – com o melhor dos dois – iniciou-se com «Lá em baixo». «Boa noite pessoal do Avante! e os de lá de trás também», ironizou Sérgio Godinho. A cumplicidade entre os dois músicos com o público da Festa foi evidente durante todo o concerto. Cada tema foi cantado por milhares de vozes: «Dá-me lume», «Minha senhora da solidão», «Mudemos de assunto», «Frágil», «A noite passada», «Dancemos no mundo», dedicada a todos os refugiados e emigrantes do mundo, «Deixa-me rir» e «Portugal, Portugal». Os punhos voltaram-se a erguer com «Liberdade», que antecedeu «A gente vai continuar», «Encosta-te a mim» e «Com um brilhozinho nos olhos».
Marta Ren trouxe na bagagem muito groove. «Release me», «I’m Not Your Regular Woman» e «Don’t Look» entusiasmaram pelo poder da voz e a qualidade artística da banda que a acompanhou: The Groovelevets. A esta brilhante formação juntou-se Ana Moura, que, com eles, cantou «Smiling Faces» e «(I Can’t Get No) Satisfaction» (The Rolling Stones). Já sem a fadista, mas com o guitarrista Pedro Vidal, Marta Ren terminou com «So long» e «I Wanna Go Back», uma homenagem aos anos 60 e 70 do século passado.
Os Xutos & Pontapés encerraram a programação do 25 de Abril. No 40.º aniversário da Festa, nada mais natural do que entregar a função ao Tim, Zé Pedro, Kalú, Zé Cabeleira e Gui. «Ainda bem que vieram. Somos muitos», disse o vocalista, olhando, impressionado, para aquela imensa moldura humana. «Enquanto a noite cai» abriu o desfilar de canções que perpassam por gerações, como «Salvem-se quem puder», «De madrugada (Tu & Eu)», «Contentores», «Ligações directas», «Circo de Feras», «Homem do leme», «Chuva dissolvente», «Ai se ele cai», «Tu Também (Há 10 000 anos atrás)» e «Para ti Maria».
Um momento marcante foi a entrada em palco de Paulo de Carvalho, entoando «E depois do adeus», tema que serviu de primeira senha à Revolução de 25 de Abril de 1974. A noite terminou, em grande, com outros sucessos da banda de rock.
O palco encerrou como começou, ao som da Carvalhesa e de um deslumbrante espectáculo de sincronização do fogo de artificio.
Concerto glorioso
Quando os músicos entraram no palco, para ocuparem os seus lugares na orquestra, já havia milhares de visitantes da Festa no relvado do Palco 25 de Abril. E muitos mais caminhavam em direcção à Praça de revista-programa em punho, aberta na página do Concerto Sinfónico para um Glorioso Aniversário.
O concerto de música clássica da sexta-feira da Festa do Avante! é um acontecimento central do programa. Não se trata de um elemento mais no desfilar do melhor que, nas artes dos sons, se produz por cá e por outros lados – o Concerto é um ponto alto, momento de grande importância política, a prova de que a elitização da Cultura depende mais do contexto do que do objecto. A Festa do Avante! é o lugar em que a música erudita se vê livre dos veludos em que as classes dominantes a pretendem encerrar, para se oferecer a quem a quiser para si, ali onde a proposta cultural e a disponibilidade para a novidade é matéria mesma da «Cultura Integral do Indivíduo». Ali onde os sons se assumem instrumento de civilização no lado justo da luta de classes, matéria de emoções e de reflexão dos muitos milhares de pessoas que vivem na Festa a dimensão cultural da democracia. Por isso, quando a Orquestra Sinfonietta de Lisboa tingiu o ar da Atalaia com as primeiras notas de L’Arlesienne percebeu-se, também ali, no silêncio que se fez, o significado de 40 anos de Festa do Avante!, naquele lugar de encontro com o que é irrepetível e merece a máxima atenção.
Va, pensiero, de Verdi, acendeu nos rostos os sorrisos do reconhecimento da velha melodia vestida de coro e orquestra, a obra com que o maestro Riccardo Muti acompanhou, numa noite de 2011, palavras veementes contra os cortes na Cultura naquela mesma Itália do compositor. Quem descia a encosta que escorre da velha entrada da Medideira sentou-se no asfalto e ali ficou, em monumental anfiteatro, atento ao que viria a seguir: Glinka, Méhul, o Coriolano de Beethoven envolvendo a multidão num crescendo de sons e de emoções, visitantes da Festa interrompendo os caminhos da Atalaia para ficarem ali. A seguir viria Free at Last – um dos dois Espirituais Negros do programa – mesmo antes de Acordai, o mesmo que acendeu vozes na velha FIL, na primeira edição da Festa. Acompanhou Vozes ao Alto no palco e na Praça, como no poema da Jornada, a música a estender-se de novo para fora do palco, na mais bela das homenagens a Lopes-Graça e a José Gomes Ferreira, militantes comunistas e obreiros das glórias que são desta Festa, deste povo, mas também de todos os povos da Terra. Por isso é que Katyusha fez sentido nesta comemoração, memória sonora da resistência e da vitória sobre o fascismo, de que também Shostakovich foi obreiro na sua Leningrado cercada e bombardeada durante 900 dias. Foi com o segundo andamento da 10.ª Sinfonia que o compositor soviético esteve, uma vez mais, na Festa do Avante!.
Quem não sabia a letra entoava a melodia. Milhares de vozes se ergueram da margem do Tejo para entoar El Pueblo Unido Jamas Será Vencido, escrita por Sergio Ortega em pleno governo da Unidade Popular. A canção, meio hino meio palavra de ordem, estendeu-se pelo relvado da Praça, subiu as encostas da Festa, mobilizou voz
Quando os músicos entraram no palco, para ocuparem os seus lugares na orquestra, já havia milhares de visitantes da Festa no relvado do Palco 25 de Abril. E muitos mais caminhavam em direcção à Praça de revista-programa em punho, aberta na página do Concerto Sinfónico para um Glorioso Aniversário.
O concerto de música clássica da sexta-feira da Festa do Avante! é um acontecimento central do programa de actividades. Não se trata de um elemento mais no desfilar do melhor que, nas artes dos sons, se produz por cá e por outros lados – o Concerto é um ponto alto, momento de grande importância política, a prova de que a elitização da Cultura depende mais do contexto do que do objecto. A Festa do Avante! é o lugar em que a música erudita se vê livre dos veludos em que as classes dominantes a pretendem encerrar, para se oferecer a quem a quiser para si, ali onde a proposta cultural e a disponibilidade para a novidade é matéria mesma da «Cultura Integral do Indivíduo». Ali onde os sons se assumem instrumento de civilização no lado justo da luta de classes, matéria de emoções e de reflexão dos muitos milhares de pessoas que vivem na Festa a dimensão cultural da democracia. Por isso, quando a Orquestra Sinfonietta de Lisboa tingiu o ar da Atalaia com as primeiras notas de L’Arlesienne percebeu-se, também ali, no silêncio que se fez, o significado de 40 anos de Festa do Avante!, naquele lugar de encontro com o que é irrepetível e merece a máxima atenção.
Va, pensiero, de Verdi, acendeu nos rostos os sorrisos do reconhecimento da velha melodia vestida de coro e orquestra, a obra com que o maestro Riccardo Muti acompanhou, numa noite de 2011, palavras veementes contra os cortes na Cultura naquela mesma Itália do compositor. Quem descia a encosta que escorre da velha entrada da Medideira sentou-se no asfalto e ali ficou, em monumental anfiteatro, atento ao que viria a seguir: Glinka, Méhul, o Coriolano de Beethoven envolvendo a multidão num crescendo de sons e de emoções, visitantes da Festa interrompendo os caminhos da Atalaia para ficarem ali. A seguir viria Free at Last – um dos dois Espirituais Negros do programa – mesmo antes de Acordai, o mesmo que acendeu vozes na velha FIL, na primeira edição da Festa. Acompanhou Vozes ao Alto no palco e na Praça, como no poema da Jornada, a música a estender-se de novo para fora do palco, na mais bela das homenagens a Lopes-Graça e a José Gomes Ferreira, militantes comunistas e obreiros das glórias que são desta Festa, deste povo, mas também de todos os povos da Terra. Por isso é que Katyusha fez sentido nesta comemoração, memória sonora da resistência e da vitória sobre o fascismo, de que também Shostakovich foi obreiro na sua Leningrado cercada e bombardeada durante 900 dias. Foi com o segundo andamento da 10.ª Sinfonia que o compositor soviético esteve, uma vez mais, na Festa do Avante!.
Quem não sabia a letra entoava a melodia. Milhares de vozes se ergueram da margem do Tejo para entoar El Pueblo Unido Jamas Será Vencido, escrita por Sergio Ortega em pleno governo da Unidade Popular. A canção, meio hino meio palavra de ordem, estendeu-se pelo relvado da Praça, subiu as encostas da Festa, mobilizou vozes e punhos fechados que sublinharam, palavra a palavra, a frase em castelhano que logo se transformou em «O Povo Unido Jamais Será Vencido». Era a Festa a cantar a uma só voz – o Coro Sinfónico Lisboa Cantat e o povo ali presente, numa tal vivacidade que despertou vozes e punhos cerrados entre as fileiras da Orquestra, metáfora das desobediências de que se faz o progresso histórico, homens e mulheres a juntarem-se ao movimento de massas.
António Rosado entregou-se à Fantasia Coral de Beethoven com a mesma competência que se veria em Carnegie Hall, na Bolshoi Zal do Conservatório de Moscovo ou noutro qualquer palco do Mundo. E, como o pianista, todos os músicos e cantores, talvez por terem percebido o significado daquele lugar e da gente de que é feito, um lençol imenso de gente celebrando, pela Música, as lutas de todos os povos pela dignidade, nos tempos todos de que se faz a História. Ao acorde final da Fantasia – ao acorde final do Concerto Sinfónico – responderam os aplausos, os assobios, o brado da multidão que ali celebrou um aniversário glorioso. E uma vida já comprida de encontros marcados com a Arte, no mais democrático território da Cultura portuguesa. Primeiro o silêncio, a seguir a música, depois os aplausos, agora os mil sons de que se faz a Festa do Avante! Bastaria o Concerto para que a Festa valesse a pena. Mas estava só no início.