Volta ao mundo em três dias

Auditório 1.º de Maio

Volta ao mundo em três dias

À entrada do Auditório 1.º de Maio, junto ao lago, lia-se: «PCP, liberdade, democracia, socialismo. Um projecto de futuro». O programa do espaço ultrapassou todas as expectativas, cumprindo uma diversificação musical sem paralelo.

Sexta

Da República Popular da China veio um grupo de artistas da Mongólia Interior, apresentado como património imaterial e internacional. Vestidos a rigor com diferentes trajes, mostraram a sua milenar cultura através de complexas manifestações artísticas: duetos, solos femininos e masculinos, dança e interpretação de instrumentos musicais típicos daquela região. Contaram histórias do outro lado do mundo. «Isto é muito psicadélico», ouviu-se entre a multidão, que dali não arredou pé.Este espectáculo voltou a abrir o programa, no sábado e no domingo, e mostrou-se ainda no Avanteatro e no Palco Solidariedade do Espaço Internacional. 

Jon Luz, de Cabo Verde, fez-se acompanhar de instrumentos sonantes (acordeão, cavaquinho, guitarra, baixo, bateria, percussões), interpretados por músicos brilhantes. O funaná foi rei, sem esquecer outros ritmos, igualmente quentes e sensuais, da América do Sul. «É um prazer enorme estar aqui. Avante, camaradas!», afirmou Jon Luz.

Eneida Marta prestou um verdadeiro tributo à música da Guiné-Bissau. Apresentou «Nha Sunhu», onde se inclui «África Tabanka Povo», tema que dedicou a todo o povo africano. «Vocês são um público fantástico», despediu-se, deixando um «muito obrigado».

A primeira noite terminou com Tabanka Djaz e Danny Silva, que se fizeram acompanhar por uma verdadeira big band de imensa qualidade. Sons quentes numa noite gelada, onde não faltaram «Branco velho, tinto e jeropiga» e «Crioula de São Bento», mas também «Foi assim» e «Depois do silêncio». 

Sábado

Terrakota prometeu uma viagem pelo mundo e cumpriu, mantendo o reggae como espinha dorsal da actuação. A mutiplicidade de instrumentos, ritmos e sonoridades, numa festa inebriante e ininterrupta, resultou num espectáculo cheio de movimento e cor, com dança à medida de cada tema. Gritaram «Avante, camaradas!», a anteceder «É Verdade», e já ninguém parou de saltar, no palco e na plateia.

Jorge Moniz Quarteto apresentou composições marcadamente jazzísticas, alimentadas por influências como o rock, drum & bass e música popular portuguesa. Alternou ritmos bem fortes, até limiarmente pesados, com a melancolia, por exemplo, de «Neblina». Encerrou com uma versão de um tema de Fausto, da autoria de Jorge Moniz e Mário Delgado, guitarrista do quarteto que, noutros projectos, voltaria por mais duas vezes ao palco neste dia.

Tribute to Pete Seeger, homenagem belga ao grande cantor e autor norte-americano, foi mesmo um forte chamamento. Ao som dos instrumentos acústicos que distinguem o folk, como o contrabaixo, as guitarras e o incontornável banjo, o espectáculo foi, do princípio ao fim, uma comunhão de vozes que extravasou o palco. A partir de «Sticking to the union», tudo foi cantado por todos e, acrescente-se, com punhos erguidos, culminando no marcante «We shall overcome».

Aos poucos, o som de Sensi foi puxando mais e mais gente. Hip-hop e funk bem carregados marcaram um espectáculo muito forte. Na constante e enérgica comunicação com o público, Sensi solicitou saltos e calor e disse que «estamos todos ao mesmo: festa, liberdade», sendo estes, aliás, temas recorrentes nas suas letras. Com «Eu quero», o músico lisboeta pôs, literalmente, toda a gente a dançar.

Para Marta Hugon, actuar na Festa «é um bocadinho como estar de volta a casa, mas agora deste lado». Um auditório absolutamente embalado pela clareza das palavras cantadas, pela execução instrumental e pelos arranjos plenos de calor, quase contrastando com a enorme sobriedade dos músicos em palco (Filipe Melo, Bernardo Moreira, Mário Delgado e André Sousa Machado) recebeu uma voz plena de jazz, que teve uma incursão por Art Garfunkel e Paul Simon, com «Still crazy after all this years».

Janita Salomé confirmou a sua popularidade entre os visitantes da Festa. Visitou obras de Hélia Correia, Herberto Hélder, José Jorge Letria e outros grandes poetas nacionais. Destacaram-se, além da magnífica voz e interpretação, os arranjos arrojados e quase sempre surpreendentes, com execução magistral. No final, Janita deixou entender que gostaria de continuar e o público mostrou-se também disposto a isso.

Mimicat, autora e compositora de todos os temas do álbum de estreia «For you», mostrou uma voz enorme, quente e de poderoso registo. A secção de metais, com trombone de vara e trompete, em permanente movimento coreografado, realçou a forte inspiração na música norte-americana dos anos 1940-50. Carregada de sensualidade, Mimicat pôs o Auditório a cantar refrões, de ouvidos e olhos presos ao palco até ao fim, quando brindou a plateia com «Hit the Road Jack», de Ray Charles, tema generosamente retribuído.

Ensemble Super Moderne trouxe ao palco o jazz em pleno. Num Auditório que continuava repleto, cada tema foi uma viagem, entre caos e ordem, por momentos melódicos de instrumentos e secções, entre experimentalismo e «conforto». Em desafio ao ouvido e cérebro, com improvisos e composições mais organizadas, houve lugar para o aviso de que «a próxima dá para dançar».

Capicua deitou a casa abaixo. O Auditório e as laterais e traseiras exteriores encheram-se de público para, pelo menos, ouvir a rapper militante oriunda do Porto, que trouxe letras carregadas de teor social, batidas e instrumentais crus e duros a acompanhar palavras zangadas, sempre numa relação intensa com o público, ruidosa e estridentemente rendido, a saltar e dançar.

No último concerto da noite, o ISGA Collective mostrou como reiventa para a contemporaneidade a música tradicional galega, sem abdicar das suas sonoridades típicas, designadamente na presença do violino e gaita de foles. A banda de Vigo e a sua vocalista Mónica de Nut encantaram e aqueceram. 

Domingo

Sebastião Antunes & Quadrilha sabem que são presença estimada na Festa. «Ai caramba» garantiu à partida um Auditório cheio, a cantar e dançar até ao fim. A excepção foi uma homenagem a Mariem Hassan, cantora, autora e activista política do Saara Ocidental falecida recentemente, que há dois anos actuara neste espaço. Sebastião, sozinho em palco com a guitarra, dedicou-lhe «Traz outro amigo também». Outros amigos da música e da vida aceitaram o convite e fizeram também esta festa.

O blues puro e duro teve com Serushiô a sua representação garantida. Foram «apenas» dois músicos em palco: Zé Vieira na guitarra e na percussão (bombo de bateria e pratos de choque), e Seru na guitarra e voz, forte e pungente. Os temas do duo oriundo do Porto, repletos de riffs fortes e contagiantes, com ocasionais slides nas guitarras e também com a menos reconhecida guitarra havaiana, foram atraindo mais e mais gente ao concerto. Ficou ainda o convite para uma sessão de autógrafos, umas horas depois, na Festa do Disco.

Pedro Mestre não trouxe só temas de «Campaniça do Despique», editado no início deste ano pelo empenhado conservador e divulgador de tantas facetas do cante alentejano, que aos sons de sempre somou teclas, flauta, baixo, guitarra e percussão. A festa do Alentejo fez-se na tarde de domingo com «Os Camponeses de Pias», «Os Ganhões de Castro Verde» e «Os Almocreves da Amieira», que acompanharam Mestre e seus músicos e que tiveram também voz própria no palco. Com emoções ao rubro, o público aplaudiu, cantou e conseguiu o encore, deixando no ouvido «Alentejo é nossa terra».

Sexteto de Jazz de Lisboa, ressurgido após mais de trinta anos da sua formação, levou ao sunset de domingo os bons motivos que justificaram o reagrupamento para o ciclo «Histórias de Jazz em Portugal», em Maio, revisitando o álbum «Ao Encontro», editado em 1988. Sabendo que iria ouvir do melhor jazz que cá se faz, o público sentou-se no chão para receber com todas as honras Tomás Pimentel, Edgar Caramelo, Mário Laginha, Pedro Barreiros, Mário Barreiros e Ricardo Toscano.

O seu altar de caveiras, encimado por um altifalante, foi estrela enquanto decorriam as afinações, tempo mais que suficiente para voltar a encher o Auditório e arredores, até à relva junto ao lago. Com os Dead Combo em cena, explodiu um pesado delírio de luz e ritmo. Tó Trips e Pedro Gonçalves fizeram o que bem sabem e o público correspondeu como exigem os seus acordes. Ao fim de pouco mais de doze anos, o duo teve na Festa pais e filhos a ouvir, a dançar, a curtir, subindo e acelerando faixa após faixa, até fechar com «Zorba, o Grego», tema explicitamente apontado à crise.

António Chainho manobrou com toda a mestria a chave que lhe foi entregue para fechar a programação deste ano no Auditório. As «Cumplicidades» em que assenta a celebração dos seus 50 anos de carreiras, cumpridos em Janeiro, fizeram a guitarra portuguesa ter por companhia, para além da viola de fado, uma dupla de percussão que pôde brilhar em solos. Aliás, à guitarra-rainha coube abrir, entre instrumentais e variações, espaço nobre aos seus convidados desta noite única: Filipa Pais, o trompetista Raul d’Oliveira, o Grupo Coral e Etnográfico da Casa do Povo de Serpa, Hélder Moutinho, Paulo de Carvalho e Ana Bacalhau.

Em jornal «Avante!»