Um palco que é também uma forma de resistência

Avanteatro destaca obra de O Bando

Um palco que é também uma forma de resistência

À semelhança do que sucedeu o ano passado com A Barraca, esta edição do Avanteatro destaca na sua programação o grupo O Bando, que estará presente com três espectáculos. Para Manuel Mendonça, um dos responsáveis por este espaço da Festa do Avante!, trata-se de uma justa homenagem a uma «companhia histórica do teatro português» e, sobretudo, uma expressão de solidariedade face às imensas dificuldades que a política cultural (se assim se pode chamar) dos sucessivos governos está a impor aos criadores.

Fundado em 1974, o grupo de Teatro O Bando é – como se afirma no seu sítio na Internet – «uma das mais antigas cooperativas culturais do País», tendo na sua génese o teatro de rua e as actividades de animação para a infância, em escolas e associações culturais, «integradas em projectos de descentralização», que hoje prosseguem. As suas criações, acrescentam, definem-se «pela sua dimensão plástica e cenográfica, marcada sobretudo pelas Máquinas de Cena, objectos polissémicos que transportam em si uma ideia de acção. O trabalho dramatúrgico é também muito importante, apresentando a explícita colagem de materiais literários e a inclusão de manifestações de raiz popular».

Em conversa com o Avante!, Manuel Mendonça justificou a opção – que está longe de ser inédita – de destacar na programação do Avanteatro um determinado grupo ou companhia pelo seu papel relevante na promoção do teatro e da cultura. O Bando, e o seu fundador João Brites, são sem dúvida merecedores de tal homenagem, que será complementada com uma exposição patente no exterior do espaço, onde se passará em revista as já mais de quatro décadas de intensa actividade do grupo, actualmente sediado no concelho de Palmela.

A própria escolha dos espectáculos a apresentar no Avanteatro teve em conta o percurso do grupo: um deles, D. Afonso Henriques, estreado em Novembro de 1982, é sem dúvida uma das grandes criações d' O Bando. Em 1983, o crítico João Caldas escreveu em O Jornal que «o teatro tem como maior fascínio precisamente o poder de contar histórias de viva voz, libertando as palavras das suas prisões encadernadas e devolvendo-as, transfiguradas, através do fenómeno artístico. É nisso que O Bando aposta neste espectáculo».

As outras duas peças d' O Bando, inspiradas em obras de Virgílio Ferreira, são Em Nome da Terra e Senhor Imaginário. O primeiro destes espectáculos – a ser levado à cena no exterior – é, nas palavras de Manuel Mendonça, uma reflexão «muito forte» sobre o envelhecimento e a solidão. O segundo parte de um personagem do Auto da Purificação (encenado pelo grupo em 2012) e pretende parodiar «um ridículo reduto de resistência interposto entre nós próprios, enquanto Imaginários insubmissos, e uma nação ocupada, vendida a retalho por mercadores sem escrúpulos», como se pode ler no texto de apresentação da peça.

Resistência à destruição

Mas o destaque dado a este grupo não é apenas uma homenagem, por mais justa que esta seja – e é. É também, nas palavras de Manuel Mendonça, um grito de alerta contra a degradação que afecta mesmo as mais célebres e históricas companhias de teatro portuguesas, fruto da política de cortes nos apoios às artes aplicadas por sucessivos governos, em particular pelo actual.

Tal como A Barraca, também O Bando procura resistir ao desmantelamento das suas unidades de produção, afirma o responsável pelo Avanteatro, revelando que ambas as companhias já não contam com um elenco fixo, para além de um restrito número de actores e técnicos. Os restantes são contratados «à peça». Esta situação levou, por exemplo, a que no ano passado não tivesse sido possível a' O Bando apresentar no Avanteatro o espectáculo A Jangada de Pedra, pois alguns dos seus actores se encontravam envolvidos noutros projectos. Casos destes, assegura Manuel Mendonça, são mais que muitos. Perdem as companhias, os criadores, o público e, sobretudo, a cultura portuguesa.

Expressão da vida e da luta

Reforma Agrária. 40 anos. Três vozes do Teatro é, para Manuel Mendonça, outro dos destaques da programação deste ano do Avanteatro. O espectáculo, encenado e interpretado por encenadores e actores que passaram pelo Cendrev (outra das grandes companhias teatrais portuguesas) e produzido pela associação cultural «É Neste País», parte de documentos autênticos da Reforma Agrária, como entrevistas, depoimentos, discursos e textos programáticos, e junta-os às memórias dos próprios artistas, que testemunharam essa grande e exaltante transformação que se produziu no Alentejo na sequência da Revolução de Abril e participaram em dezenas de espectáculos em Unidades Colectivas de Produção e cooperativas, nas herdades libertadas do latifúndio.

No texto de apresentação do espectáculo refere-se que «o fim da Reforma Agrária foi também o fim do tempo de um certo modo de fazer fazer teatro: houve um público da Reforma Agrária e houve um teatro na Reforma Agrária». Manuel Mendonça, por seu lado, destacou precisamente a capacidade que, nos anos da Revolução, algumas companhias teatrais tiveram de se fundir com os trabalhadores e as populações das localidades onde se instalaram e apreender a sua vivência, as suas aspirações e as suas lutas. Assim se criaram não só novos públicos mas também novas formas de fazer e viver o teatro. O Cendrev e a Companhia de Teatro de Almada foram dois desses grupos, destacou.

Teatro de qualidade

O Homúnculo, de Natália Correia, é outro dos espectáculos que o Avanteatro apresenta na edição deste ano. Fala de um país imaginário, que não vem nos mapas, onde um homem «impõe a sua vontade e governa acima de todos os outros». A primeira e única edição deste livro foi apreendida pela PIDE, em 1965. Nunca foi encenado e levado à cena por uma companhia profissional. É-o agora, 50 anos depois, pelo Teatro Estúdio Fontenova.

O Teatroensaio, do Porto, traz ao Avanteatro o espectáculo Transumância, resultante de uma residência no interior centro do País, envolvendo a poesia, a música e os célebres adufes. O espectáculo acompanha o «lamento acompanhado dos rebanhos» e a «busca do pão através dos caminhos (que está na origem da palavra que lhe dá nome), partindo do livro de poesia de Francisco Duarte Mangas.

A Companhia de Teatro de Almada apresenta a sua adaptação da obra de Eça de Queirós, O Mandarim, e a Companhia de Teatro do Algarve o texto premiado de Luís Campião, Nossa Senhora da Açoteia, interpretado por Luís Vicente, que também assegura a encenação. A acção desenrola-se numa aldeia do litoral algarvio, quando a pesca e a indústria conserveira ainda eram actividades vibrantes, mergulhando nas tradições e crenças daquela comunidade.

Música, dança, cinema

Como é habitual, a programação do Avanteatro não se limita ao teatro, inclui também as artes de palco em geral. Para os mais novos, há duas propostas, divididas pelas manhãs de sábado e domingo: Re ligações, da Companhia de Dança de Almada; e Taleguinho, Costurar Cantigas e Histórias, com Catarina Moura e Luís Pedro Madeira.

A música estará igualmente presente, com vários espectáculos no Bar: O Barco Azul, de André Santos & MOB Ensemble; Seiva; Kharga; e os Roncos do Diabo. A dança vem do País Basco, com Pasado Perfecto, de Horman Poster.

O cinema documental tem o seu espaço, este ano com o filme de Zelito Viana Augusto Boal e o Teatro do Oprimido. Com depoimentos do próprio Augusto Boal, de Ferreira Gullar, Edu Lobo, Chico Buarque, Aderbal Freire-Filho e Cecília e Julian Boal, o filme revela as características deste tipo de teatro, entre as quais se conta a democratização, o acesso das camadas sociais menos favorecidas à criação e fruição e a transformação da realidade através do diálogo e do teatro. A obra de Boal é estudada em todo o mundo e adaptada em diversos países. Augusto Boal foi censurado durante a ditadura militar brasileira e exilado na Europa durante 10 anos. Aí teve oportunidade para propagar o Teatro do Oprimido e utilizá-lo como ferramenta de inclusão social.

Em jornal «Avante!», Nº 2170 de 2 de Julho de 2015