Deolinda
DOIS SELOS E UM CARIMBO
Dá-me a tua mão, sai de casa e vem para a rua: a música popular lisboeta rememorou os seus feitos, redescobriu alegria e candura num meio onde isso já parecia improvável, e até encontrou maneira de o expressar. E olha: tornou-se outra vez contagiante, fez-se outra vez entusiasmo, tornou-se outra vez popular. Como sucedeu isso? Foi aos poucos, de forma quase sub-reptícia (num jogo de agentes livres), mas com vivacidade, instrumentos antigos e paixão pela arte – para construir peças de teatro musical, às quais não falta enredo, nem graça, nem sequer uma personagem central: a Deolinda, que é fictícia, até certo ponto, embora por vezes ganhe corpo e assuma a forma da cantora Ana Bacalhau. Hoje em dia já seria fútil evocar a adesão e o entusiasmo que o quarteto constituído pela cantatriz Ana, pelas guitarras dos irmãos Martins e pelo contrabaixista Zé Pedro Leitão suscitaram nas suas audiências, antes e depois da publicação do primeiro álbum de originais, «Canção ao lado». Passaram-se dois anos entretanto. Por isso, também já seria fútil recordar como o grupo e as suas canções ultrapassaram bem a prova de esforço – das salas pequenas, para as salas maiores, daí para os concertos estivais, com multidões ao ar livre, e a seguir para os teatros, rádios e televisões de outros países do continente, a confirmar as cores e o tom distintamente locais. O que aqui se ouve é Lisboa. Uma certa Lisboa. Cantada. Ora cantar Lisboa – isto é, dizer, exaltar, louvar, poetar, gorjear um certo estado de espírito e uma certa maneira de estar e de conviver numa certa cidade – não é tarefa fácil. Por um lado trata-se de uma cidade onde cabe um país inteiro, cheio de particularidades. Por outro cantar é ofício antigo, já muito usado e abusado; coisa de artesão, e com tecnologia de outras eras. Mas as canções de Pedro da Silva Martins transmitem uma série de saborosos ingredientes que não dependem da tecnologia instrumental. Por exemplo: o empenhamento de um olhar atento, selectivo e consciente do espaço em que age. E certas outras qualidades desse olhar. Vivacidade, agilidade, afectividade; discernimento e sensatez num meio em que estes não abundam (e por isso disfarçados de sátira). Para além de uma peculiar alegria no entendimento – quando o olhar afinal se compõe e se pode exprimir por palavras, articular-se, numa linguagem fluida e escorreita, mas requintada e correctíssima. E se parece tão fácil quando se canta, provavelmente há duas razões para isso. A primeira e evidentíssima, é o nível de exemplaridade a que Ana Bacalhau está a saber levar a sua arte, feita respiração, timbre e prosódia em deolíndico corpo.
A segunda, igualmente evidente a quem tiver ouvido atento, são as tessituras instrumentais que convocam e integram diversas formas musicais castiças, das antigas às recentes, com engenho mas sem artifícios. E com esses dois selos sucede a tal coisa: as canções tornam-se contagiantes, tornam-se entusiasmo, tornam-se populares. De súbito, toda a gente percebe quem é a Deolinda. A Deolinda és tu, é ela, sou eu. E o maior mastro do mundo é português! Falta o carimbo. Vai para a felicidade da ilustração e do tratamento gráfico, a fazer lembrar as folhas volantes, com as letras das canções em voga, que os cegos outrora vendiam nas ruas da Baixa e nas estações de comboio. Música para cegos? Bom ponto de vista para uma sátira. Desde que não caia em orelhas moucas…
site:
http://www.deolinda.com.pt
myspace:
http://www.myspace.com/deolindalisboa
foto:
video:
DOIS SELOS E UM CARIMBO
Dá-me a tua mão, sai de casa e vem para a rua: a música popular lisboeta rememorou os seus feitos, redescobriu alegria e candura num meio onde isso já parecia improvável, e até encontrou maneira de o expressar. E olha: tornou-se outra vez contagiante, fez-se outra vez entusiasmo, tornou-se outra vez popular. Como sucedeu isso? Foi aos poucos, de forma quase sub-reptícia (num jogo de agentes livres), mas com vivacidade, instrumentos antigos e paixão pela arte – para construir peças de teatro musical, às quais não falta enredo, nem graça, nem sequer uma personagem central: a Deolinda, que é fictícia, até certo ponto, embora por vezes ganhe corpo e assuma a forma da cantora Ana Bacalhau. Hoje em dia já seria fútil evocar a adesão e o entusiasmo que o quarteto constituído pela cantatriz Ana, pelas guitarras dos irmãos Martins e pelo contrabaixista Zé Pedro Leitão suscitaram nas suas audiências, antes e depois da publicação do primeiro álbum de originais, «Canção ao lado». Passaram-se dois anos entretanto. Por isso, também já seria fútil recordar como o grupo e as suas canções ultrapassaram bem a prova de esforço – das salas pequenas, para as salas maiores, daí para os concertos estivais, com multidões ao ar livre, e a seguir para os teatros, rádios e televisões de outros países do continente, a confirmar as cores e o tom distintamente locais. O que aqui se ouve é Lisboa. Uma certa Lisboa. Cantada. Ora cantar Lisboa – isto é, dizer, exaltar, louvar, poetar, gorjear um certo estado de espírito e uma certa maneira de estar e de conviver numa certa cidade – não é tarefa fácil. Por um lado trata-se de uma cidade onde cabe um país inteiro, cheio de particularidades. Por outro cantar é ofício antigo, já muito usado e abusado; coisa de artesão, e com tecnologia de outras eras. Mas as canções de Pedro da Silva Martins transmitem uma série de saborosos ingredientes que não dependem da tecnologia instrumental. Por exemplo: o empenhamento de um olhar atento, selectivo e consciente do espaço em que age. E certas outras qualidades desse olhar. Vivacidade, agilidade, afectividade; discernimento e sensatez num meio em que estes não abundam (e por isso disfarçados de sátira). Para além de uma peculiar alegria no entendimento – quando o olhar afinal se compõe e se pode exprimir por palavras, articular-se, numa linguagem fluida e escorreita, mas requintada e correctíssima. E se parece tão fácil quando se canta, provavelmente há duas razões para isso. A primeira e evidentíssima, é o nível de exemplaridade a que Ana Bacalhau está a saber levar a sua arte, feita respiração, timbre e prosódia em deolíndico corpo.
A segunda, igualmente evidente a quem tiver ouvido atento, são as tessituras instrumentais que convocam e integram diversas formas musicais castiças, das antigas às recentes, com engenho mas sem artifícios. E com esses dois selos sucede a tal coisa: as canções tornam-se contagiantes, tornam-se entusiasmo, tornam-se populares. De súbito, toda a gente percebe quem é a Deolinda. A Deolinda és tu, é ela, sou eu. E o maior mastro do mundo é português! Falta o carimbo. Vai para a felicidade da ilustração e do tratamento gráfico, a fazer lembrar as folhas volantes, com as letras das canções em voga, que os cegos outrora vendiam nas ruas da Baixa e nas estações de comboio. Música para cegos? Bom ponto de vista para uma sátira. Desde que não caia em orelhas moucas…