Música

Concerto sinfónico

Orquestra Sinfonietta de Lisboa

A Revolução na Arte e a Arte na Revolução


Sexta-Feira, 3

22:00, Palco 25 de Abril

Foi assim

Eis as novidades do concerto sinfónico da Festa!: orquestrações sinfónicas originais sobre canções revolucionárias, com temas da Comuna de Paris, de Hanns Eisler e de Fernando Lopes-Graça. Os três primeiros andamentos de três sinfonias de Beethoven que revolucionaram a música ocidental e iniciaram o chamado período Romântico. Estreia da última versão de António Vitorino D’Almeida para a «Abertura Clássica sobre um tema popular português, Op. 87», mais conhecida por «Carvalhesa». Desde os tempos das guerras napoleónicas até ao século XXI, o concerto sinfónico deste ano da Festa do Avante!, que celebra os 100 anos do PCP, desenha um percurso paralelo, com mais de dois séculos, entre movimentos revolucionários nos quais a arte musical se envolveu e revoluções estéticas que a própria criação sonora concebeu... Ah!, ainda há outra novidade: a plateia é com lugares sentados.

Orquestrações Sinfónicas para canções populares

Jean- Baptist Clément

Da gaita-de-foles emTrás-os-Montes... até à orquestra sinfónica na Atalaia

Em Março de 1985 a Comissão Política do CC do PCP criou um grupo de trabalho com o objectivo de se tentar criar um tema musical para a campanha eleitoral para as eleições legislativas desse ano. Depois de estudadas várias hipóteses, a escolha do tema partiu de uma consulta do livro «Cancioneiro Popular Português» de Michel Giacometti (Círculo de Leitores. Lisboa, 1981). Segundo o relato pormenorizado de Ruben de Carvalho, que pode ser lido no site do PCP (https://www.pcp.pt/carvalhesa-texto-de-ruben- -de-carvalho), A «Carvalhesa» foi uma das peças gravadas por Giacometti na mesma aldeia (Tuiselo, perto de Vinhais - Bragança) onde em 1932 o maestro Kurt Schindler recolhera outra melodia com o mesmo nome, publicada em «Folk Music and Poetry of Spain and Portugal» (Columbia University. Hispanic Institut in the United States. New York, 1941). Giacometti havia recolhido em 1970 uma outra, a que os seus executantes populares atribuíam o mesmo nome, mas inteiramente diferente.

Face às duas versões, Giacometti entendeu ser mais interessante a recolhida por esse compositor alemão. E indicaria na página 217 do «Cancioneiro» a «Carvalhesa» como tendo sido recolhida por Kurt Schindler.

Em 1991 foram gravadas novas versões da «Carvalhesa», que expandiram a melodia habitualmente ouvida em ritmo popular português, para formatos pop, rock, jazz e clássico.

A recriação da «Carvalhesa», nesta última versão, foi entregue a António Vitorino D’Almeida, que lhe chamou “Abertura Clássica sobre um tema popular português”. Desde a versão original, que seria editada nesse mesmo ano em CD, António Vitorino d’Almeida tem trabalhado e melhorado a abordagem inicial e é a versão mais apurada que, pela primeira vez, vamos ouvir no concerto sinfónico deste ano na Festa do Avante!.

Coma Arte na Revolução

Alexandre Weffort

Dois autores do séc. XX serão lembrados em Setembro na Atalaia, Hanns Eisler e Lopes- -Graça. Em comum, constituem personalidades de referência na Arte dos respectivos países. Eisler colaborará com Bertold Brecht na mobilização do proletariado alemão na luta travada contra a ascensão do fascismo na Alemanha; Lopes- -Graça, em colaboração com poetas neo- -realistas, como José Gomes Ferreira, Mário Dionísio e João José Cochofel, entre muitos outros, procurará a mobilização no seio do MUD, da juventude contra o fascismo salazarista e o Estado Novo.

Assumindo o internacionalismo, em 1937 Eisler levará a sua música aos palcos da Guerra Civil espanhola, junto das Brigadas Internacionais; fixado em Paris desde 1936, Lopes-Graça participará em 1939 no esforço de resistência ao avanço do nazismo, alistando-se no Corpo de Voluntários «Amis de la République Française». Não tiveram contacto pessoal (1), mas marcaram, em consonância com a ideologia comunista que perfilham, um exemplo de participação com a arte na revolução. Eisler construiu um conjunto de canções, assumidamente pensadas como repertório de luta e de formação da consciência de classe do proletariado – consciência de que a música deve ser parte integrante – assumindo o propósito de colaboração no esforço de criação de uma arte interventiva, dizendo: «o estilo, o método de organização dos sons deve mudar de acordo com a finalidade da música. Uma canção de luta, para que seja cantada pelos ouvintes, deve ser composta de forma diversa da de uma obra coral comum. (…) Não possuímos padrões estéticos rígidos, antes controlamos a nossa produção de acordo com os objectivos revolucionários (…) recusamos a forma do concerto, desenvolvido na época da burguesia dominante, pois resulta inútil aos propósitos da classe operária revolucionária. Somente proporciona um desfrutar descomprometido, criando no ouvinte uma atitude passiva» (2). Lopes-Graça legou-nos o património precioso das «Canções Heróicas», peças que nasceram «de um desejo comum de dar ao nosso povo um pequeno repertório de canções que correspondessem ao conteúdo actual da sua consciência (…) isto sem abdicar, é claro, da qualidade artística, caindo em banalidades ou em equívocas transigências» (3). O propósito interventivo das «Canções Heróicas» era claro: intervir. Pergunta Cochofel a Lopes-Graça em Novembro de 1945O «Já se canta por aí? Já foi cantado na última reunião? Não deixes de nos mandar cópias» (4). Tratava-se das primeiras canções entretanto publicadas na revista Seara Nova: «Jornada», «Mãe pobre» e «Companheiros, unidos!». Eisler e Lopes-Graça estiveram ideologicamente juntos. Com o mesmo gesto revolucionário por meio da Arte, procuraram mobilizar públicos e consciências, fazendo uso certeiro das técnicas de composição musical e da capacidade de, com a participação activa do ouvinte – onde o efeito de distanciamento brechtiano estará presente –, tornar a fruição musical num acto transformador do mundo.

Distanciação em Brecht

José Carlos Faria

Sou um autor de peças
Mostro aquilo que vi
Vi como o homem era negociado. Isso
Mostro eu, o autor de peças.
(Bertolt Brecht)

A chamada Distanciação corresponde a uma tradução pouco assertiva de Verfremdungseffekt, a que Brecht, nos seus escritos, por vezes, designou também como Efeito V.

Melhor fora pois chamar-lhe efeito de estranheza, estranhamento ou espanto, considerando os equívocos e mal-entendidos conceptuais (e alguns anedóticos) que a palavra suscitou; desde os que entenderam ser uma questão de distância física nos arranjos cénicos até àqueles que ao tal efeito chamavam Quinto, confundindo a letra V com o algarismo romano.

De facto, o conceito de Distanciamento surge a partir da tradução alemã da palavra russa Ostranienike, que o «formalismo russo» tinha proposto já em 1817. É provável que Brecht possa ter conhecido a expressão na sua viagem a Moscovo em 1935, onde se deixou fascinar pelos códigos de representação do actor chinês Mei-Lan Fang. Seguindo Hegel («O conhecido, por ser conhecido, é desconhecido»), tal efeito consistia em eliminar de um incidente ou de um personagem, aquilo que possui de manifesto, conhecido ou evidente e poder assim redescobri-lo. Uma das revoluções estéticas mais importantes da estética teatral do século XX, e porventura a mais decisiva, distante dos processos de identificação e da catarsis Aristotélica, aderindo à teoria marxista da alienação das relações humanas ao dinheiro, provocada pela produção capitalista, erguia-se como uma arma de consciencialização e politização, destinada a cumprir também uma função de divertimento («quanto mais poético e artístico, mais momento de reflexão, verdade e lucidez», notava o homem de teatro brasileiro, Fernando Peixoto), um método de trabalho que suscita a reflexão crítica apta a discernir a verdade, decorrente de um pensamento teórico e prático, não dogmático, ágil, isento de mistificações, de hipnotizar e anestesiar, visando a emancipação e a difícil e exigente apreensão das contradições da sociedade contemporânea. O actor cita a personagem representada. O espectador deve reflectir e agir, fora do teatro. A verdade não está no palco, mas na vida real. Denúncia activa de um sistema social – a ordem da sociedade burguesa, em que as ideias da classe dominante se constituem em ideias dominantes – cabe ao espectador compreender a realidade, e, se for possível, transformá-la.

Três canções da Comuna de Paris com arranjo sinfónico inédito

Pedro Tadeu

Um arranjo sinfónico de três canções que fizeram parte da história de há 150 anos da Comuna de Paris: Le Temps des Cerises, Chant Des Ouvriers e La Canaille, está a ser elaborado pelo compositor Filipe Melo e estreará na Festa do Avante!. A letra de Le Temps des Cerises foi escrita cinco anos antes dos acontecimentos da Comuna de Paris (1871) por Jean Baptiste Clément. A música, composta três anos depois, é de Antoine Renard. O texto de Le Temps des Cerises é impreciso: fala de uma «ferida aberta», de uma «memória que guardo no coração», de «cerejas de amor. [...] caindo [...] em gotas de sangue». Essas palavras evocam uma ferida aberta por um amor perdido. Mas as cerejas do texto de Clément também podiam significar as marcas vermelhas que mancham corpos feridos por balas. Há também a coincidência cronológica entre a data da chacina da Semana Sangrenta que acabou com a Comuna e a época das cerejas em França. Estas analogias levaram a canção a ser entoada nas ruas pela multidão durante os 71 dias de governo operário, não por ter referências diretas à revolução, mas por uma enternecedora associação que os «communards» fizeram entre o amor pela vida e o amor revolucionário.

O Chant des Ouvriers também é anterior à Comuna: é criada por Pierre Dupont em 1846, e seria em primeiro lugar o hino de uma revolta de trabalhadores ocorrida em França em 1848. A letra de Pierre Dupont fala especificamente das condições desumanas da vida dos operários mas, ao mesmo tempo, proclama a esperança no amor de classe, na união dos trabalhadores: «Amemo-nos uns aos outros (...) Pela independência do mundo», canta várias vezes o refrão. Em Agosto de 1851, o grande poeta francês Charles Baudelaire escreve o seguinte acerca do Chants des Ouvriers: «Será uma honra eterna de Pierre Dupont ter sido o primeiro a arrombar a porta. Com o machado na mão, ele cortou as correntes da ponte levadiça da fortaleza; agora a poesia popular pode passar».

La Canaiile é outro canto revolucionário adotado pela Comuna (data de 1865). Tem letra de Alexis Bouvier e música de Joseph Darcier. «Canalha» aqui tem o sentido de «ralé» e era a expressão de desprezo com que a aristocracia se referia ao povo, às classes baixas da sociedade da época que se envolviam em sucessivas insurreições e protestos. A letra de Bouvier vira o jogo: o protagonista da canção acaba por demonstrar que só encontra honra e dignidade nessa «canalha» que os poderosos tanto desprezam e proclama, orgulhoso e repetidas vezes: “é a canalha, é o que eu sou».

Beethoven representa uma certa idade da Europa

Alexandre Weffort

Beethoven é homenageado nesta 45.ª Festa do Avante!. Celebração que ocorre num tempo histórico concreto e espaço específico – a Quinta da Atalaia –, o concerto sinfónico cumpre a tradição de trazer a chamada «música clássica» ao convívio dos gestos revolucionários. A marcha da Humanidade processa-se em espaços e tempos concretos. Em cada momento da História, os valores humanistas estão presentes em todas as esferas da vida, também da Arte. Neste programa, cruzando a obra de um génio criador, Beethoven, com a expressão da arte engajada nas lutas sociais de finais do séc. XVIII ao tempo presente, em que celebramos o centenário do PCP.

Beethoven ama a liberdade «comorgulhosa consciência... »

Em Beethoven, grandes períodos criadores –, obra de Romain Rolland, traduzida em 1960 por Lopes-Graça, diz Lopes-Graça: «Não é apenas mais uma biografia (…). Procurando aliar a investigação à exegese, a musicologia à psicologia, procurando, em suma, surpreender, à luz dos documentos (…), o próprio processo interior da gestação artística». Beethoven, um músico revolucionário, é-o enquanto cidadão e enquanto compositor e, em ambos, vemos um homem no seu tempo. Os valores em que se exprime o seu ser revolucionário devem ser, assim, vistos sob o prisma do momento histórico, a transição entre os séc. XVIII e XIX, no dealbar da revolução industrial. É omomento em que nasce o proletariado e em que a burguesia se afirma ainda como classe progressiva, na superação da aristocracia decadente.

Segundo Rolland, «todo o ser de Beethoven – a sua sensibilidade, a sua concepção do mundo, a forma da sua inteligência e da sua vontade, as suas leis de construção, a sua ideologia, bem como substância do seu corpo e do seu temperamento – tudo isso é representativo de uma idade da Europa». Anuncia- -se «uma velha sociedade que se decompõe, de uma outra que surge. E antes que a nova sociedade possa constituir-se, é o homem-indivíduo que deve emancipar-se».

O Beethoven revolucionário procede, em primeiro lugar, à «reivindicação do individualismo revoltado». A música de Beethoven acompanha, na transição do ano de 1800, os ideais do romantismo que, através do Sturm und Drang (na nota de Lopes-Graça: «Tempestade e Ímpeto. Designação de um estado de espírito, de uma disposição psicológica (…) que lavrou na Alemanha dos fins de Setecentos»). No entanto, diz Rolland, «o Eu de Beethoven não é o dos românticos. (…) Neles, tudo lhe repugnava: a sua sentimentalidade, a sua falta de lógica a sua imaginação desregrada». Beethoven ama a liberdade «com orgulhosa consciência … Quem se liberta dos liames e da mordaça do velho mundo podrido dos seus senhores, dos seus deuses, deve mostrar-se digno da sua nova liberdade, deve saber aguentá-la». O percurso pela obra sinfónica de Beethoven seguirá uma ordem cronológica. A fruição dos primeiros andamentos das 3.ª, 5.ª e 7.ª sinfonias será confrontada com canções revolucionárias de França, da Alemanha e de Portugal. A Festa do Avante! homenageia assim Beethoven, a sua música e a sua intrínseca e complexa humanidade individual. Nela, a música, vai ancorar forças para o combate colectivo, nos tempos que hoje atravessamos.

Três razões (entremuitas outras) para dizer que Beethoven foi revolucionário

Pedro Tadeu

1 – A Terceira Sinfonia (concluída em 1804)

O primeiro manuscrito da Terceira Sinfonia recebeu o título, escrito pelo próprio punho do compositor, de «Buonaparte». Mas quando Beethoven soube que a República francesa decidira passar a Império e que Napoleão, em 1804, se coroara imperador, ficou furioso. E aqui entramos na parte em que mito e história se misturam, num episódio inúmeras vezes contado: Beethoven, ao receber a notícia, gritou contra o novo imperador: «Ele não passa de um homem vulgar!». Indignado, rasgou a dedicatória da sinfonia e escreveu este título, que atirava a admiração por Napoleão para o passado: «Sinfonia Eroica... para celebrar a memória de um grande homem!» Beethoven, um republicano, pode ter ficado desiludido com Napoleão e com a Revolução Francesa, mas na realidade esta sua Terceira Sinfonia constituiu um genuíno e puro acto revolucionário: a Eroica durava mais de 50 minutos, era a mais longa sinfonia até então escrita e foi a maior obra puramente instrumental de Beethoven.

A sequência de andamentos da música desafiou os cânones da época. A intensidade emocional que ela transmite nada tem a ver com o que se escrevera até então no género. Com a terceira sinfonia, este formato passou a ter o estatuto de obra rainha na música erudita, e isso mudou a História da música, revolucionou-a de um dia para o outro.

É o primeiro andamento desta Terceira Sinfonia, que vamos ouvir no concerto da Festa do Avante!. Para muitos foi aqui que começou uma nova era da música: o Romantismo.

2 – A Quinta Sinfonia (escrita em 1808)

O primeiro andamento da 5.º Sinfonia, a segunda peça de Beethoven que será escutada neste concerto, abre com quatro notas que toda a gente conhece. São três notas curtas e uma longa, que criam uma frase que está presente em todos os outros movimentos da obra.

Eis aqui mais um aspecto inovador, formalmente «revolucionário» na obra do compositor: este procedimento nunca tinha sido utilizado numa sinfonia, a primeira que o compositor escreve em tom menor. Para além disso, a sequência de andamentos também volta a desafiar a estrutura formal das sinfonias do Classicismo. É uma das obras mais tocadas em todo o mundo.

3 – A Sétima Sinfonia (concluída em 1812)

A terceira peça que vamos ouvir no concerto da Festa do Avante! é o primeiro andamento da Sétima Sinfonia, que ficou conhecida como a «sinfonia do ritmo» dado o seu carácter geral de grande alegria, tendo apenas um movimento em quatro com textura meditativa e introspectiva. Mais uma vez esta solução formal rompe – de uma forma completamente diferente do que aconteceu com a Terceira e a Quinta – com o modelo clássico de sinfonia e muda a percepção da cultura musical ocidental em relação ao valor da música instrumental. As recentes celebrações dos 250 anos de Beethoven em todo o mundo, comprovam a perenidade e razoabilidade do habitual epíteto: genial.

O valor estético está sempre ligado à vida social

Filipe Diniz

Numa Festa em que arte, política e povo circulam lado a lado, é importante recordar como a reflexão de Álvaro Cunhal situava a arte no movimento da sociedade. Identificou o essencial: a arte está indissolúvel e inevitavelmente ligada à vida social, e esta reflecte-se na criação artística, até independentemente da vontade do artista. Nenhuma arte é neutra nessa relação. Ao mesmo tempo que o observava, Álvaro Cunhal possuía um profundo entendimento do que constitui o valor intrínseco da obra de arte, da sua autonomia própria e inigualável, e da sua capacidade de, sendo irrepetível expressão de individualidade, abrir em cada criação um novo horizonte aos humanos todos, de ampliar, enriquecer e gerar novos elos de ligação à melhor expressão de humanidade. Uma profunda consciência da duração e universalidade do valor estético.

A vida de Álvaro Cunhal atravessa um dos mais ricos e intensos períodos da história humana, em que as expressões artísticas vivem o urgente desejo de participar activamente no processo de transformação da sociedade. Mas em que, em simultâneo, persiste no movimento das artes a vontade de isolar a criação artística face à realidade de um mundo em convulsão, assolado pela devastação da guerra, pela barbárie fascista, pela desumana desigualdade e opressão mais extrema. E também, para alguns artistas, pelo ascenso dos inestéticos humilhados e ofendidos da Terra à condição de sujeitos históricos de pleno direito, dispostos a mudar o mundo de cima a baixo, incluindo o mundo das elites culturais e artísticas. É nesse quadro histórico que Álvaro Cunhal situa a reflexão sobre o lugar da arte. É nele que insere o entendimento de uma arte socialmente comprometida, e nele que argumenta em sua defesa. Quando, em 1954, escreve na prisão sobre o tema (5 notas sobre forma e conteúdo, sob o pseudónimo António Vale) a expressão que utiliza - tal como também o faz Mário Dionísio – é arte de tendência. No seu livro A Arte, o Artista e a Sociedade (1996) o termo que utiliza é arte de intervenção. E essa diferença assenta num consistente aprofundamento de pensamento: o compromisso social da arte nunca poderia resultar da adopção de tal ou tal escola ou opção estética, mas do genuíno empenho criador do artista. Arte é liberdade. É sobre esse amplo entendimento que Álvaro Cunhal situa a arte comprometida que, sendo do nosso tempo, se insere numa linhagem milenar. A arte que, como a de Brueghel, pinta o povo como se fosse um deles. A arte de Guernica, milagrosa junção de uma linguagem revolucionária com a indignação e a condenação de um crime monstruoso. A arte em que, como na 5.ª sinfonia de Beethoven, a mensagem de liberdade é elemento integrante do valor estético. A arte que cultiva uma raiz popular e partilha da aspiração dos povos ao progresso, à liberdade, à emancipação humana.

A arte recusa obedecer a quaisquer regras

Manuel Augusto Araújo

A arte de intervenção empenhada com os objectivos de transformação social e política da sociedade foi objecto de grandes controvérsias e polémicas nas primeiras décadas do séc. XX e está intimamente ligada à evolução de toda a história das artes até aos nosso dias, no que vulgarmente se designa como artes contemporâneas, objecto de não menores polémicas exactamente por genericamente renunciarem a qualquer investimento de ordem social e político, com experimentações estéticas, muitas delas na fronteira ou mesmo no território do kitsch, distanciando-se do que é a marca de água da arte de intervenção acusada de esquematismos estéticos a favor do seu comprometimento ideológico. Debates que, noutros contextos e com outros enquadramentos, continuam nos dias de hoje mesmo que de forma oblíqua. O pano de fundo é o das relações entre infraestrutura e superestrutura desenvolvidas por Marx e Engels: «a produção das ideias, representações, da consciência, está em princípio directamente entrelaçada com a actividade material e o intercâmbio material dos homens, linguagem da vida real. O representar, o pensar, o intercâmbio espiritual dos homens aparecem aqui ainda como o efluxo directo do seu comportamento material.

«A arte e a literatura, sendo parte intrínseca da superestrutura, têmuma autonomia relativa emque a sua qualidade estética e artística são fundamentais para a sua afirmação»

O mesmo se aplica à produção espiritual como ela se apresenta na linguagem da política, das leis, da moral, da religião, da metafísica, das artes, da ideologia, etc., de um determinado povo».(1) Uma leitura de vulgata coloca a superestrutura directamente dependente da infraestrutura o que, no caso das artes e da literatura legitimaria qualquer obra de arte desde que tivesse o objectivo de contribuir politicamente para a luta de emancipação dos povos independentemente da sua qualidade artística e estética, o que contraria Marx e Engels que defendiam a relação dialéctica entre a infraestrutura e a superestrutura, a acção de retorno da superestrutura sobre a sua base, a infraestrutura, pelo que a arte e a literatura, sendo parte intrínseca da superestrutura, têm uma autonomia relativa em que a sua qualidade estética e artística são fundamentais para a sua afirmação. A arte de intervenção deve sempre ter bem presente o que Álvaro Cunhal inscreve no final do seu ensaio sobre as artes, os artistas e a sociedade, «um apelo à arte que intervém na vida social é intrinsecamente um apelo à liberdade, à imaginação, à fantasia, à descoberta e ao sonho. Ou seja: não à obediência a quaisquer «regras» obrigatórias, antes a consideração de que a criatividade artística, mesmo quando parte de certas «regras» acaba por modificá-las, ultrapassá-las e superá-las» (2)

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