Na 40.ª edição da Festa do Avante! a gravura estará em destaque no espaço das Artes Plásticas, situado no coração do Espaço Central, que este ano se localiza junto à nova entrada, no terreno da Quinta do Cabo. A exposição de desenhos do arquitecto Francisco da Silva Dias, «Cenas do Século XX», que completa a programação do espaço, apresenta uma visão sobre factos e figuras da cidade de Lisboa no início dos anos 60 do século XX. 

A gravura foi a forma primordial de o Homem registar a sua presença na Terra através da expressão artística. As gravuras rupestres do Vale do Coa, que remontam ao Paleolítico Superior, são das mais antigas e significativas concentrações deste tipo de arte em todo o mundo: nas suas rochas de xisto, o Homem deixou gravadas imagens de bovídeos e equinos, que hoje podem ser visitadas no Parque Arqueológico existente nesse local do nordeste de Portugal.

Poucas semelhanças haverá entre estas primeiras gravuras e as variadas técnicas desenvolvidas no Oriente e na Europa de transposição para papel ou tela de gravações em diversos suportes rígidos. O princípio, porém, mantém-se: a incisão de uma imagem numa determinada superfície. Se para os primeiros gravadores do Vale do Coa esse era o destino final do seu trabalho, para os gravadores mais recentes a superfície constitui a matriz a partir da qual é possível transpor as imagens para outros suportes e produzir vários exemplares de uma mesma gravura. Os sulcos gravados na matriz tanto podem surgir no trabalho final em positivo como em negativo.

Ao longo dos séculos foram desenvolvidas diversas formas de gravura e foram muitos os suportes utilizados, da madeira ao metal passando pelo stencil. Mais recentemente, a serigrafia assumiu-se como uma das mais populares técnicas de gravura, por permitir tiragens maiores e exigir meios de execução mais simples. As técnicas envolvendo chapas de metal ou madeira, por serem sujeitas a um maior desgaste, aguentam tiragens mais pequenas.

Como afirmou ao Avante! Francisco Palma, da Comissão de Artes Plásticas da Festa, a gravura (em praticamente todas as suas expressões) representa uma forma de «democratização da arte», ao permitir a realização de múltiplos. Muitos notáveis artistas contemporâneos não hesitam em recorrer à gravura, e principalmente à serigrafia, quer para difundir a sua arte a um público mais vasto como também para criar trabalhos originais. Como realça Francisco Palma, «há dois tipos de serigrafia, a artística e a de reprodução».

 Gravura Hoje!

 Ao longo dos séculos, foram muitos os pintores famosos que se afirmaram também como notáveis gravadores: Dürer, Goya, Van Dyck são porventura os mais célebres numa lista que é extensa. Em Portugal, artistas como Júlio Pomar, Vieira da Silva ou Julião Sarmento, por exemplo, recorreram frequentemente à serigrafia para darem largas à sua imensa e cativante criatividade.

Mas na exposição da Festa do Avante!, na qual estarão patentes cerca de oito dezenas de obras de 44 gravadores, o destaque irá para muitos dos que fazem da gravura a sua disciplina artística de excelência, revela Francisco Palma. Independentemente da evolução que a arte contemporânea imprimiu também nesta forma de expressão artística e da fusão que fomentou entre as várias disciplinas das artes plásticas, os autores presentes na exposição são, antes de mais e na sua maioria, gravadores. As principais técnicas – ponta-seca, água-tinta e água-forte – estarão presentes, assim como serão variados os suportes das matrizes, na sua maioria chapas de aço, cobre ou latão. A serigrafia também ocupará um lugar destacado.

Como o próprio título indica – «Gravura Hoje!» –, a exposição do Espaço das Artes Plásticas representará as tendências actuais da gravura que, não perdendo as suas especificidades e características próprias, já não tem fronteiras tão estanques com outras disciplinas como sucedeu noutros tempos. Como realça Francisco Palma, nas obras de muitos artistas contemporâneos, a gravura tanto surge como base para pinturas ou colagens, como é impressa sobre fundos tão variados como pinturas ou fotografias. A «Pop Arte» e o «Expressionismo Abstracto» foram pioneiros nesta fusão.

Longe dos holofotes e das câmaras de televisão, há em Portugal gravadores de talento, a quem a Festa do Avante! procurará dar o merecido relevo. Entre os múltiplos e valorosos centros de criação artística especialmente voltados para a gravura, destaca-se pelo seu trabalho, e sem desprimor para outros, a Associação de Gravura da Amadora (AGA), a Associação de Gravura Água-Forte, a Cooperativa Diferença e a Matriz-Associação de Gravura do Porto.

A gravura ao serviço da luta

Pelas especificidades da sua luta clandestina e por contar nos seus quadros de revolucionários profissionais com talentosos artistas plásticos como José Dias Coelho ou Margarida Tengarrinha, o PCP utilizou a profusamente a gravura na sua imprensa clandestina: os assassinatos de Catarina Eufémia ou Cândido Capilé, as lutas dos trabalhadores contra a repressão ou as próprias tipografias clandestinas foram realidades retratadas em gravuras publicadas nas páginas do Avante! e de outros órgãos de informação e agitação partidários e unitários.

A Lisboa dos anos 60 no olhar de Francisco da Silva Dias

Para quem conhece a arquitectura portuguesa, Francisco da Silva Dias dispensa apresentações: projectos de urbanização em diversos concelhos do País, a elaboração do programa-base de requalificação do Teatro de São Luiz, em Lisboa, e a remodelação do edifício dos Paços do Concelho da capital fazem parte do seu extenso e notável percurso profissional, marcado por diversos prémios nacionais e internacionais.

Formado em Arquitectura pela Escola Superior de Belas-Artes em 1957, dedicou o seu trabalho final de licenciatura aos «Aspectos do Problema da Habitação em Portugal: Projecto de uma Unidade de Habitação Colectiva» (em 2000, concluiu o Doutoramento).

Iniciou a sua carreira profissional nesse mesmo ano de 1957 no Gabinete de Urbanização da Câmara Municipal de Almada e no ano seguinte estava já a colaborar no Inquérito à Arquitectura Popular em Portugal, promovido pelo Sindicato Nacional dos Arquitectos – o mesmo para cuja direcção foi eleito em 1963 e para a qual não chegou a tomar posse por ter sido impedido pelo Ministério das Corporações. Em 1960, passou a integrar o Gabinete Técnico de Habitação da autarquia da capital.

A par da actividade docente nos cursos de arquitectura na Escola Superior de Belas-Artes e posteriormente na Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa, Francisco da Silva Dias foi entre 1990 e 1992 presidente da Associação dos Arquitectos Portugueses e entre 2006 e 2011 foi o primeiro Provedor da Arquitectura da Ordem dos Arquitectos. Foi ainda eleito para a Assembleia Municipal de Lisboa nas listas da CDU, pelas quais se candidatou por mais do que uma vez.

Na Festa do Avante!, estará presente sobretudo a vertente de Francisco da Silva Dias enquanto cidadão atento e interveniente, que nunca se desliga da sua profissão de arquitecto. A exposição «Cenas do Século XX – Memórias da Vida de uma Cidade» é composta por 22 desenhos originais de cenas, factos e figuras da capital nessa década marcada pela opressão fascista e pelo ascenso da luta da classe operária e das massas populares. Os desenhos foram elaborados quando o agora consagrado arquitecto era um jovem bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian.

Esta exposição é cedida pela Casa da Cerca – Centro de Arte Contemporânea de Almada, a quem pertencem todos os desenhos, cedidos pelo autor. No texto de apresentação dessa mostra, elaborado aquando da sua inauguração, a directora da Casa da Cerca, Ana Isabel Ribeiro, afirmava que Francisco da Silva Dias «retira e transpõe para o papel (de pequena e discreta dimensão, como não poderia deixar de ser), as profissões que são também sons, as realidades sociais, os factos políticos que atravessaram todo o século XX da cidade de Lisboa. Da escolha destas temáticas, muitas delas também passadas à escrita, não se pode dissociar a dimensão de cidadania empenhada presente e dominante» do autor.

Esta exposição é uma oportunidade para conhecer melhor um dos mais prestigiados arquitectos portugueses e, por intermédio da sua obra, a Lisboa popular e operária do início da década de 60.

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