Sucessivas edições mostraram à exaustão que o teatro tem um público próprio na imensidão da oferta cultural da Festa do Avante. Porém, a transferência do Avanteatro do coração da Festa para um local recolhido junto à nova entrada da Quinta do Cabo, com todos os benefícios associados que se confirmariam plenamente, levantava uma dúvida essencial: como se comportaria o público? Estariam as pessoas dispostas a cruzar o terreno para assistir a um espectáculo cénico? A perda da centralidade diminuiria a afluência?

A resposta, clara e categórica, foi dada logo na noite de sexta-feira, na abertura da programação.

Pouco antes da hora marcada, o pavilhão encheu-se de gente e não eram visitas de ocasião, mas pessoas que vinham ver a peça, «O Feio», apresentada pela Companhia de Teatro de Almada.

Na sala desfrutava-se uma rara tranquilidade, um quase silêncio nunca antes obtido em espaços anteriores do Avanteatro, apenas quebrado, ocasionalmente, pelas arruadas de bandas de bombos e de gigantones que dali partiam para animadas deambulações pelo terreno.

Pela primeira vez, o trabalho dos actores desenrolou-se sem interferências maiores ou persistentes. O espectáculo surtia pleno efeito na assistência.

Estas impressões do repórter coincidiram com a opinião manifestada por visitantes e pelas diferentes companhias e grupos, segundo nos revelou Manuel Mendonça, da organização do Avanteatro.

«Todos foram unânimes em reconhecer que a nova localização melhorou substancialmente as condições de isolamento acústico. O teatro ganhou em ter saído de uma zona com fontes de ruído constantes, porque o teatro é a palavra, é a voz».

O balanço é pois favorável: «Todos os camaradas que integram a Comissão do Avanteatro consideram que a nova localização é altamente positiva, traduzindo-se numa inegável melhoria das condições deste espaço», disse Manuel Mendonça.

Enchente histórica

Perto das oito da noite de sábado, já com o foyer completamente cheio, começou a formar-se uma fila de pessoas que rapidamente se estendeu por cerca de 200 metros. Era algo inédito.

Ao longo dos anos, o Avanteatro teve muitas enchentes de público e chegou-se a ver filas à porta do pavilhão. Porém, nada de comparável com o que estava a acontecer.

O cartaz anunciava um clássico: a peça «Tartufo», uma das mais célebres comédias de Molière, levada à cena pelo grupo A Barraca, com encenação de Hélder Costa.

Nessa tarde, durante o debate evocativo dos 40 anos da Constituição, Pedro Estorninho, director da companhia portuense Teatroensaio, lamentava o desaparecimento de várias trupes teatrais e exortou os presentes a reclamarem o seu direito à cultura.

«Só no Porto fecharam cinco companhias no ano passado», disse Pedro Estorninho, lembrando que o acesso à cultura é um direito consagrado constitucionalmente que sucessivos governos têm desprezado.

Muitos dos que esperaram uma boa meia-hora para assistir ao Tartufo não puderam entrar. O anfiteatro era demasiado pequeno para tamanha multidão e depressa ficou lotado, incluindo os degraus da escadaria e outros espaços de passagem. Mas a espera não foi totalmente em vão. Quem viu a fila serpenteando até à entrada do Avanteatro (que, aliás, voltou a repetir-se, com menor dimensão, na manhã de domingo para o espectáculo de marionetas da Lua Cheia), pôde facilmente constatar que não é por falta de público que as companhias fecham, mas sim em resultado de uma política de desresponsabilização do Estado, que tem asfixiado financeiramente as diferentes áreas da cultura e condenado à indigência material produtores e criadores culturais.

Um programa de excelência

A grande afluência de público ao Avanteatro é em grande parte explicada pela variedade e qualidade dos espectáculos que ali se realizam. A já referida peça «O Feio», foi um dos que mais se destacaram. A história chama a nossa atenção para os falsos padrões de beleza física, transformados em obsessão social, condição de sucesso e, é claro, lucrativa mercadoria. Mas e se o rosto perfeito, normalizado pela cirurgia plástica, se banalizasse? Por certo, como nos mostra a peça, seria rejeitado como antes a fealdade.

«De Aço e de Sonho» foi a proposta do Teatro Extremo, assumidamente brechtiana, para assinalar o 40.º aniversário da Constituição de 1976. O espectáculo, que também é uma homenagem ao general Vasco Gonçalves, figura maior da Revolução de Abril, iniciou-se com a leitura da sua mensagem ao Festival de Teatro de Nancy de 1977, um texto esquecido, oportunamente recuperado pelo Teatro Extremo.

A hipocrisia de Tartufo e a sua falsa beatice («não há pecado se se pecar em silêncio») incutiram na peça de Molière, estreada no longínquo ano de 1664, num texto imortal, uma actualidade acutilante, como demonstrou a encenação de A Barraca, correspondida por uma enchente de público sem precedentes.

Outros espectáculos merecem uma referência especial, caso de «Onde o frio se demora», do grupo Narrativensaio-AC, com texto da jornalista Ana Cristina Pereira. Três monólogos baseados em histórias reais de mulheres – relatos sobre o drama da violência doméstica, da solidão, do envelhecimento.

«A Entrada do Rei», apresentada pela Este – Estação Teatral, remeteu-nos para a época em que Portugal perdeu a sua independência, caindo sob o domínio dos Filipes.

A Al.gu.res, associação cultural de Montemor-o-Novo, apresentou o concerto-espectáculo «Levantei-me do Chão», criado e representado por Carlos Marques, que cruza excertos do célebre romance de Saramago com canções originais sobre o mundo em que vivemos e a luta pela sua transformação.

A dura realidade da Palestina foi evocada pelo Freedom Theatre, grupo de teatro e centro cultural que desenvolve a sua actividade no Campo de Refugiados de Jenin, no Norte da Cisjordânia.

No teatro de rua, brilhou o grupo Rei Sem Roupa com uma comédia inspirada nas figuras de D. Quixote e Sancho Pança.

Como é habitual, as manhãs de sábado e domingo foram dedicadas aos mais pequenos, que se deliciaram com a peça «D. Afonso Henriques 3em1», apresentada pelo grupo Output Teatral de Lisboa, ou com as maravilhosas marionetas da Lua Cheia.

No Avanteatro houve ainda espaço para o cinema, com o documentário de Inês Medeiros, «Cartas a Uma Ditadura», e para a música, com Maria Anadon, «Tribute a Frank Zappa» e os Voodoo Marmalade, que encerraram a programação.

Antes, no palco viu-se e ouviu-se a ópera «Rita» de Donizetti, na versão para canto e piano, interpretada pelo grupo All’Opera, Companhia de Ópera Itinerante. Uma estreia auspiciosa.

Em jornal «Avante!»

Partilhar